3.2.04

Lubutu

Estrictamente falando, Lubutu não era da nossa jurisdição. Não tínhamos nada que fazer lá, portanto. Mas o Governador (auto-intitulado "La Force Tranquile du Manyema") queria absolutamente visitar o sítio, e começava a fazer pressões cada vez mais pesadas; uma dessas pressões era proibir (ou pelo menos dificultar) a saída de víveres, ou ficar com uma parte cada vez maior "para os soldados: também são seres humanos, também merecem assistência". O facto singelo e irrefutável de os nossos estatutos, que ele conhecia melhor do que muitos de nós, proibirem explicitamente a assistência a soldados no activo deixava-o indiferente.

Um dia cedemos: alguém nos dissera que a situação em Lubutu estava insustentável, e, mesmo sabendo que não podíamos fazer nada, decidimos ir ver in situ o que se passava. Avisámos o Governador, um gordo enorme, detestável, que se deslocava numa liteira artesanal transportada por quatro, ou seis, desgraçados; ele reuniu a sua comitiva - tínhamos sempre que limitar o número de pessoas que queria trazer consigo: a ideia que o avião tinha uma quantidade limitada de lugares, mesmo que ainda houvesse espaço, era-lhe totalmente incompreensível - e lá fomos, no Dakota, um avião mítico, justificadamente.

Comecei logo por me aborrecer com a Força Tranquila porque o chefe da segurança dele vinha armado, e nós tínhamos-lhe pedido - e ele acedido - que não haveria armas a bordo. Depois, aborreci-me porque ele nos disse que ia fazer uma visita à área, e eu sabia o que isso significava: sua majestade (como qualquer gestor português que se preze, de resto) gostava de se fazer esperar.

O quadro que nos tinham descrito também não era muito animador: 120,000 pessoas alimentadas por um Dakota diário que vinha, se não me engano, de Kisangani, e que não chegava a carregar três toneladas de alimentos - o que para 120,000 pessoas é pouco, muito pouco. A "pista de aterragem" era um bocado de estrada alcatroada com quatro metros de largura e com 1,200 metros de comprido - exactamente, ao metro, a distância necessária para o Dakota àquela altitude. Para além do avião diário, operado já não sei por quem, havia uma presença reduzida dos MSF - e era tudo. Estávamos portanto preparados para o pior - isto é, muito, muito tensos.

Quando chegámos à vertical da pista não queríamos acreditar no que víamos: ela era recta, sem dúvida, mas não era plana; fazia uma espécie de V invertido. Numa das extremidades (aquela onde devíamos aterrar) havia árvores de 30 metros de altura. E sobretudo, as pessoas, alertadas pelo barulho de um avião que lhes era familiar, e onde normalmente vinha a comida, começaram a aglutinar-se ao longo da estrada. E como os nossos pilotos nunca faziam uma aterragem numa pista que não conhecessem sem a medir primeiro, ainda tiveram mais tempo para se aproximar, esfomeadas.

A técnica de aterragem era simples: passadas as árvores deixar cair o avião o mais possível na vertical. Eu estava sentado no lugar do engenheiro de vôo, entre os dois pilotos. A estrada, ou pista, ou o que lhe quiserem chamar estava completamente atulhada de gente, com a primeira linha a tentar resistir aos empurrões dos de trás. A poucos metros do solo, o co-piloto, Andy, disse-me nos interfones:
- Luis, já viste um co-piloto a borrar-se de medo? - O Andy era forte, jogador de rugby, orgulhoso (uma vez utilizei o termo braai - Afrikaans para "churrasco" - e ele perguntou-me com que direito é que eu usava aquela palavra. Tive que lhe dizer que tinha vivido em Moçambique para o acalmar, e para ele me aceitar. Depois tornámo-nos quase amigos).
- Não, Andy, nunca.
- Então olha para mim agora. Já imaginaste quantas pessoas matamos se um pneu rebenta ao aterrarmos?

Não respondi: imaginava facilmente o que nos fariam se aquilo acontecesse. Mas enfim, lá aterrámos, numa pista da qual só víamos metade, o Andy e o piloto (creio que se chamava John, mas não tenho a certeza) quase de pé nos travões, os flaps a saltar das asas, o reverse no máximo, e nós a avançar sem vermos metade da pista; depois vímo-la e pensámos que nunca pararíamos a tempo - mas acabámos por parar, mesmo no fim, a meia dúzia de metros da areia onde nos tinham avisado para não ir porque ficaríamos enterrados.

Saímos todos do avião: o Governador para a sua volta - avisámo-lo que tinha 15 minutos 15, ele pediu 30, dissémos que não - e que partíriamos sem ele se ele não estivesse lá; os pilotos ficaram perto do avião: as pessoas não queriam acreditar que não tínhamos comida e os Dakotas eram iguais. Eu fui falar com a tenda da MSF, no alto do V invertido, cume de uma pequena colina de onde se via o espaço todo à volta - pelo menos até à floresta. E até onde se via só via cabeças, e mais cabeças, eram milhares, aglutinados como só os africanos sabem, a ponto de me interrogar como fariam eles para respirar.

A situação descrita pelas duas enfermeiras - pode ser que esteja enganado, mas creio que não havia médicos - do MSF correspondia à que nos tinham descrito em Kindu: três toneladas por dia era obviamente insuficiente para 120,000 pessoas; não havia medicamentos; elas não aguentariam muito mais tempo porque temiam pela segurança; e as pessoas morriam como peixes num rio poluído - depois fizeram-me uma lista de pedidos para a qual seriam necessários cinco ou seis Dakotas; de qualquer forma Lubutu ficava muito longe de Kindu - a capacidade de carga seria mínima; além disso, precisávamos do avião para as operações que tínhamos em curso; e eu lamentava muito mas não havia absolutamente nada que pudesse fazer.

Vinte minutos passaram e do Governador nem a sombra. O outro Dakota, o da comida, estava quase a chegar, e nós queríamos sair antes dele aterrar - as chegadas a Kindu à noite eram desagradáveis porque tínhamos que pedir, explicar de onde vínhamos, uma litania chata e humilhante - além de que era perigoso, e proibido, andar na cidade à noite. Mas o Governador não aparecia, e o T., que era o chefe da operação em Kindu / Shabunda, opôs-se terminantemente a que saíssemos sem ele. O Andy e o John foram falar com o outro piloto, e chegaram à conclusão que ele conseguiria aterrar - bastava empurrar o nosso avião um bocadinho para trás, mesmo para o limite da pista.

O que se passou a seguir foi, como tantas vezes, indescritível, e precisaria de um talento muito superior ao meu: o nosso avião, já de volta dada, nariz todo empertigado, numa das extremidades da pista; o outro depois de fazer a mesma aterragem que nós, mas com a massa de gente ainda mais compacta, a avançar contra o que estava parado; ninguém sabia se pararia a tempo: haveria pouco mais de cinco ou seis metros entre os dois aviões quando o segundo parasse. A minha conversa com as enfermeiras esmoreceu até parar de todo, e creio agora, mas é provavelmente imaginação minha, que o mesmo aconteceu a todas as conversas à beira da pista. A verdade é que só ouvia o barulho do avião, eu imaginava a força que os pilotos estavam a fazer nos travões e a tentar manter o avião direito, e via os dois aviões cada vez mais próximos, a olhar de alto um para o outro.

- Est-ce qu'il va s'arrêter, ce con? - perguntou uma das raparigas. - Est-ce qu'il va s'arrêter?

Parou. À distância prevista - mas agora ficávamos condicionados à saída dele; o Andy e o John, que tinham sido reféns do John Garang no Sudão, durante meses, estavam cada vez mais nervosos; o Governador não aparecia - e não havia mais nada para fazer ali. Acordei uma hora limite com os pilotos, à qual descolaríamos com ou sem Força Tranquila do Manyema; e mandei alguém buscar o gordo, ou pelo menos avisá-lo que nos iríamos embora sem ele (coisa que ninguém lhe diria, porque toda aquela gente tem um medo danado da autoridade).

O outro piloto acabou a descarga; os nossos foram para o avião pôr os motores a trabalhar para o aguentar no sítio quando o colega descolasse; dentro de 10 ou 15 minutos descolaríamos nós. Como nos filmes, o Governador aparaceu no último segundo do último minuto - mas trazia alguém com ele que queria, a todo o preço, embarcar. Os pilotos recusaram; o chefe da segurança começou a dar sinais evidentes de impaciência; o John e o Andy recusaram positiva, obstinadamente, embarcar uma pessoa a mais que fosse; o Governador tentava puxar o outro para dentro do avião; eu tentava fechar a porta - disse-lhes para arrancarem com a porta aberta, que a fecharia a tempo da descolagem, o que era impossível, claro. A confusão era total - e finalmente, ajudado pelo co-piloto, que deixara a cabine e viera cá atrás, conseguimos fechar a porta. Corremos os dois para os nossos lugares, com o avião já a rolar. A descolagem foi muito mais impressionante que a aterragem porque agora avançávamos em direcção a uma parede de árvores - para a qual avançávamos a descer e que passámos a rasar, a rasar.

Semanas depois soubémos que a MSF tinha deixado Lubutu, e que os IDPs tinham recomeçado a marcha para Sul; para a morte, a maioria deles.

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