6.9.04

Anneliese - II

II

Subia muitas vezes a casa deles, e Anneliese descia à minha. O colchão no chão – ou melhor, em cima de um tatami, porque Gianni tinha trabalhado, durante muito tempo, no Oriente, tornara-se-me familiar – se bem que nunca mais repeti a proeza daquela noite. Morávamos num prédio grande e velho, imponente, mas a precisar de obras, muitas obras. À tarde, Anneliese trabalhava num escritório de advogados. Falávamos muito, ele dos seus problemas de casal – tinham muitas divergências, Gianni e ela – e eu da minhas peças, dos meus projectos que nunca levavam a nada mas, apesar disso, me davam força para continuar. Mas essa força faltava-me, cada vez mais. Cada dia me parecia estar mais longe de um teatro, do teatro. Comecei a pensar que o falhanço é um hábito como outro qualquer, e quanto mais depressa me habituasse melhor seria.

Anneliese também não era feliz, mas eu nada podia fazer por ela. A dor, a infelicidade, a depressão têm isso de horrível : transformam-nos num poço de dentro do qual os outros são invisíveis. Ela continuava a recusar deixar o marido, que via muito menos agora porque ele tinha sido promovido e o novo posto exigia ainda mais viagens. Anneliese dizia-me que o amava : falava-me na sua gentileza, na sua generosidade, na sua magnanimidade. Qualidades que eu não via, não queria nem podia ver, encerrado no poço em que a minha vida parecia se ter alojado para sempre, no meu amor por ela, nos meus ciúmes, sentimento para mim novo e detestável.
- Tu és injusto. Além disso, ele admira-te muito.
- Nã sei porque gostas tanto dele. Nem capaz é de te dar prazer na cama. – A inveja tornava-me baixo, rasteiro.
- Tem muitos problemas no trabalho, e além disso não somos todos obrigados a interessarmo-nos pelas mesmas coisas. Imagina que sabias ganhar dinheiro como sabes fazer amor: serias rico.
- Boa ideia. Vou abrir uma escola de amor para mulheres casadas: “Traga-me a sua mulher, eu mostrar-lhe-ei como a utilizar”.
- Ganharias de certeza mais dinheiro do que ganhas agora a lavar pratos. Mas não terias muito sucesso, porque ninguém acreditaria que um gordo careca como tu sabe fazer amor.
- É verdade. Mas então porque estas tu aqui ? Porque me tocaste com os pés, naquela noite?
- Porque sabia que não corria o risco de me apaixonar por ti.
-

Anneliese estava apaixonada por Gianni, eu estava apaixonado por ela, Gianni, um belo italiano de Florença estava apaixonado por si próprio e pelo trabalho, parecia-me. Enganava-me, claro, como sempre. Para me dar alento, dizia que por baixo das manifestações exageradas de Anneliese durante o sexo se escondia uma mulher frígida, emocionalmente frígida. Ela não me amava, e eu amava-a cada vez mais, e cada vez mais me era difícil suportar esta dissimetria. O meu amor por Anneliese era a única coisa fixa e sólida na minha vida : tudo desabava, excepto esta alemã que me beijava como se eu fosse o último homem na terra e, minutos depois do amor, me dizia “boa noite” como se tivesse vindo buscar um pouco de sal. “Ela veio só buscar um pouco de sal”, dizia-me. Mas não funcionava. Este amor podia ser sólido, mas transformara-se, ele também, numa fonte de dor.

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