3.9.04

Claire - I

I

- Querido, tenho sede, passa-me a torneira…
Claire era apresentadora de programas infantis na televisão. Era também uma infatigável adepta da felação, arte na qual tinha atingido um incomparável nível de excelência. Não que excluísse as outras fontes de prazer sexual, longe disso. Tinha, simplesmente, um pequeno fraco pelo fellatio. Frequentemente perguntava-me:
- Quem manda, o pescador que tem o anzol na mão ou o peixe que o tem na boca?

E sorria, gulosa. O pai dela era director de uma fábrica de gelados. Aos 17 anos tinha persuadido, adivinha-se como, um dos contramestres a fabricar-lhe um gelado em forma de falo, no qual treinava com aplicação – como tudo o que fazia, de resto. Dias depois tentou persuadir o contramestre a juntar ao molde os testículos, o que o outro recusou com medo de perder o lugar e a reputação. Claire assediou-o de tal forma que numa semana convenceu-o não só a juntar os testículos mas a fazer um molde completo e elaborado de um pélvis masculino.

Fazia ela mesma os gelados com que enchia esse forma, e imaginava artimanhas sem fim para esconder tudo aquilo dos pais. Pouco a pouco foi aperfeiçoando o método: finalmente, no interior dos gelados colocava uma pequena pera igual à que o irmão usava para soprar as lentes das máquinas fotográficas. Enchia-a de leite condensado e quando o gelado estava quase a acabar accionava a pera. Uma vez rapou chocolate preto para imitar os pelo púbicos. Para agradecer ao contramestre insistiu com o pai para que o promovesse, pretextando que ele lhe fazia gelados muito bons e que era uma excelente pessoa.

Um vez, já na faculdade, resolveu organizar um concurso de felação, com duas amigas e três colegas do curso. À última da hora as amigas desistiram. Aplicou-se sozinha nos três rapazes, um a seguir ao outro. No dia seguinte, os três envolveram-se numa cena de pancadaria, de tal maneira violenta que um deles teve que ir ao hospital. Claire acabava de confirmar que, contrariamente ao que dizem as feministas, a distinção entre mestre e escravo é, por assim dizer, fluida.

Quando a conheci ela tinha trinta anos, uns seios pequenos mas redondos e firmes, coroados por mamilos que inchavam e se tornvam grandes e duros como chapéus de coco. Gostava de sexo: era insaciável. Mas não gostava quando eu, de brincadeira, lhe chamava ninfómana. So mais tarde, tarde demais, percebi porquê.
- Querido, comi demasiado picante, dá-me a mangueira, por favor.
- Querido, tenho uma fuga de água, passas-me a rolha?
- Pedro, pára já, aqui, tenho que ir dar uma volta a cavalo.
- Amor, preciso de creme de beleza, dás-me o tubo?

Ela tinha uma quantidade de fórmulas, que, de resto, empregava nos programas.
- Vá meninos, quem quer bater o tambor?
- E no domingo que vem, quem vai pôr uma vela na catedral?
- Hoje vamos falar de vitaminas. Uma das mais importantes é a vitamina A – e ela fazia soar aquele “A” como “AAAAAHHH”
E depois olhava para mim, através da câmara.

Eu trabalhava em casa : era – sou, ainda – tradutor, e raramente saía. Dois anos de vida em comum com Claire tinham-me feito perder a vontade de sair até para um café. Ela era doentia, patologicamente ciumenta. O simples facto de ver uma empregada olhar para mim, ou eu a olhar para ela, enquanto encomendava um café fazia-a sofrer prodigiosamente.
- Aposto que não bate o tambor tão bem como eu.
- Claire, ninguém bate o tambor tão bem como tu. Mas eu tenho que olhar para ela quando lhe falo, não?
- Porque te olha ela com aqueles olhos concupiscentes?
- Concupiscente és tu, querida, e lasciva, sensual, libertina – graças a Deus. Mas eu tenho que olhar para ela, e ela para mim, enquanto encomendo uma porcaria de um café.
- Anda fazer amor comigo na casa de banho, se gostas de mim tanto quanto dizes.
- Claire, por favor, agora não. Espera pelo menos que cheguemos a casa.
- Não dizia eu que tu já não me amas?

Eu abandonava o debate, vencido, farto, cansado – mas ia atrás dela para a casa de banho e possuía-a de pé, frente ao espelho, as nossas caras uma ao lado da outra, ela com as mãos no lavatório e eu com as minhas nos seios, nas ancas, nos ombros, no ventre dela, que era liso e terminava numa floresta luxuriante porque ela se recusava a cortar os pelos púbicos. E era lá que eu punha as mãos, enchia-as daqueles pelos fortes que imaginava percorridos de movimentos semelhantes ao das algas submarinas nos programas do Comandante Cousteau. O clítoris dela crescia, os mamilos cresciam, ela arfava violentamente, esfregava as nádegas contra as minhas virilhas, por vezes tentava tirar as mãos do lavatórios e fazia-nos perder o equilíbrio, apoiava a cabeça contra o espelho da casa de banho do restaurante chic que ficava ao lado de nossa casa e não ouvia sequer as tentativas infrutuosas que faziam os outros clientes para abrir a porta; esfregava-se em mim como se quisesse fundir-se comigo, e eu ejaculava por todos os poros do corpo, perdia a cabeça, hurrava e tinha vergonha quando saía da casa de banho e devia afrontar o olhar de gozo, ou de inveja, dos outros. Digo que a possuía, mas hoje sei que não era verdade : era ela quem me possuía, era ela o mestre, era ela que comandava e dirigia o jogo, anzol na boca ou noutro sítio qualquer.

Voltávamos para o lugar, a empregada de trombas, e Claire respondia-lhe com o seu olhar de matador, o olhar com o qual o toureiro olha o touro morto na areia, altivo e humilde simultaneamente. Por vezes pensava, mas sei agora que estava errado, que ela via os outros clientes a aplaudi-la e a gritar “uma orelha ! uma cauda!” e a enviar-lhe flores para a mesa como se estivessem no Campo Pequeno. “Ela deve estar a ver-se a dar a volta ao café, de chapéu na mão a agradecer os aplausos”.

Por vezes tentava fazer-lhe uma observação.
- Claire, "bater o tambor" é uma expressão africana para ”fazer amor”. Um dia vai haver um pai de uma das regiões onde a expressão é utlizada a ver o filhote no programa e haverá queixas.
- Sei muito bem o que “bater o tambor” quer dizer. É muito mais bonito do que “foder”, não é?
Claire tinha uma prodigiosa capacidade para fugir às questões.
- Sem dúvida, mas não é isso que está em causa, e tu sabe-lo perfeitamente. Tens um emprego óptimo na televisão, um emprego de que gostas e que fazes bem, e pões tudo em risco por causa de uma infantilidade.
- Porque é que não gostas de mim?
- Claire…
- Pedro, cala-te e faz-me amor.

E eu fazia-lhe amor. Deus sabe se eu lhe fazia amor, de manhã antes de ir para o estúdio, à noite quando voltava para casa, nos elevadores, nas casas de banho dos restaurantes e das casas dos amigos onde éramos convidados para jantar, em qualquer lugar a qualquer hora eu fazia-lhe amor. E tinha alarmes que tocavam, gritavam, hurravam, esfalfavam-se em avisos, clamavam e invectivavam-me, mas eu deixa-me ir, porque cada vez parecia melhor que a anterior, e porque Claire conseguia de mim o que nenhum afrodisíaco conseguiria. Uma vez fomos a S. Petersburg ver uma exposição, era dezembro e mesmo assim conseguimos fazer amor num banco de jardim, vinte graus abaixo de zero, os nossos corpos separados por quatro espessas camadas de roupa vezes dois, como esses presentes preciosos que se oferecem pelo Natal, as mãos dentro de umas luvas de pele e o gorro enfiado até aos olhos; ainda hoje me pergunto como conseguiu ela provocar-me uma erecção, como é que fizémos e como foi bom, a ponta do meu sexo mal tocando no dela, uma penetração que o não era – parecia-se mais com uma carícia interminável, lenta, e quando ejaculei foram torrentes que se entornaram na roupa e a deixaram a cheirar a esperma até chegarmos a Lisboa e mandarmos tudo para a lavandaria.

Conhecera-a numa festa no meu anterior emprego. Ela estava rodeada de uma cohorte de machos, cada um deles fazendo um comentário mais patético que o do vizinho. O espectáculo era aflitivo, consternante. Os homens tinham todos cinquenta anos, os olhos babados e nódoas de urina na braguilha, que o ventre os impedia de ver. Era uma empresa de construção, eram todos engenheiros, bem pagos e competentes. Ela estava no meio, sentada, com a saia bem alta e sorria a cada declaração de imbecilidade.
- Eles pensam que os seus olhos são bonitos, mas eu já vi olhos muito mais bonitos que os seus – disse-lhe, tendo bebido muito mais do que de costume. - Tome, aqui está o meu número de telefone. – Estendi-lhe um bocado de papel com o nome e o número de telefone do escritório.
Ela telefonou-me dois dias mais tarde.
- Bom dia. O meu nome é Claire. Encontrámo-nos na festa da sua empresa, lembra-se? Gostaria de vir jantar a minha casa sexta-feira que vem?
- Sim, obrigado. - Como teria eu sabido de quem se tratava ? Nessa altura eu fazia avanços a tudo o que me passasse à frente com dois seios genuinamente femininos, mas como andava em período de seca estava constantemente a tentar afogar-me por dentro, e a memória falhava-me frequentemente.

Claire morava em Alfama, num velho prédio recentemente reconstruído – reabilitado, era o termo que então se empregava. O arquitecto era bom: da sala via-se o Tejo como se estivéssemos a sobrevoá-lo muito baixo. O barulho e os cheiros da rua chegavam até nós e cada vez que fazíamos amor parecia que o fazíamos com a cidade toda.
- Boa noite. Entre. Obrigado por ter vindo. – Claire veio abrir-me a porta com um sorriso e uma mão estendida para que eu lha apertasse, em vez do beijinho que me preparava para lhe dar. – Pûs água a correr para um banho. Espero que a temperatura esteja a seu gosto. Venha, a casa de banho é por aqui.
Eu estava siderado, claro, mas fiz o que pude para não o deixar transparecer. Ainda pensei que brincava, mas depressa me apercebi que era o único hóspede. Levou-me até à porta da casa de banho e disse-me que se precisasse de alguma a chamasse.

A água estava à boa temperatura. Da banheira via-se o Tejo, parcialmente reflectido num enorme espelho que cobria por inteiro uma das paredes. Posteriormente apercebi-me que as janelas da casa eram todas iguais, com vidro até ao chão, o que nos dava a impressão de viver no vazio, ou de estar do lado de fora de um aquário, que era a cidade e o rio e a outra margem. O soalho era em madeira e a decoração modernista, subtil, de bom gosto.

Aos poucos comecei a deixar-me ir, levado pela vista de Lisboa e pela temperatura morna da água. Apetecia-me um whisky, ou um Gin and Tonic, mas não precisei de lhe pedir nada porque ela entrou na casa de banho depois de ter batido levemente à porta. Esta mulher era talvez estranha, mas mal educada não era concerteza.
- Quer um whisky, ou outra coisa qualquer?
- Um whisky, por favor. Só com gelo.
Outro ligeiro toque na porta, e ela voltou com o whisky. Tinha mudado de roupa. Agora estava só com um robe, e nua por baixo. Estava com o tal sorriso do matador, que eu tantas vezes veria. Deu-me o copo e ajoelhou-se ao lado da banheira. Pegou no meu sexo, mole e caído, com a mão esquerda, e com a outra começou a acariciar-me os testículos e as nádegas e entre as nádegas e as coxas. A erecção apareceu logo, claro. Ela beijava-me o membro de lado, como fazem os fumadores de charuto que não sabem e o cheiram ao longo do comprimento, quando na verdade um charuto cheira-se na ponta, unicamente. Mas Claire sabia, ela, perfeitamente o que estava a fazer : com a língua percorria a veia que, por baixo, traz o sangue, a vida, a esperança. Quando chegava ao fim, ou ao princípio, ao lado da raiz, tomava gentilmente um dos testículos e depois recomeçava no sentido inverso. Eu não consegia mexer-me. Imperceptivelmente ela começou a chupar-me. Cada movimento dos lábios era acompanhado em contraponto pela língua. Em astronomia chama-se periélio ao ponto da órbita de um planeta em que ele está mais perto do sol, e afélio ao ponto em que está mais afastado. Tomemos a glande pelo sol : nos periélios ela tocava com a língua aquela pequena região triangular de onde partem, harmoniosamente, as duas calotes. E nos afélios ela envolvia o membro com a língua e fazia-lhe uma espécie de leito, não sei, não sei. A água estava quente, o whisky gelado, e eu não sentia os seus dentes excepto quando ela se apercebia que eu ia ejacular: nesses momentos ela mordiscava-me a base da glande, onde o meu sistema nervoso estava concentrado. A necessidade de ejacular desfeita, ela reentrava os dentes como um cachorro se deita na casota. Os seios mal tocavam na água. A minha mão direita esperavam-nos a cada órbita, se posso continuar com a analogia astronómica. E Claire continuava, com aplicação e humor. De vez em quando mudava os movimentos da boca, ou da língua. Vinte vezes pensei que me vinha, e dezanove ela usou os dentes. Penso que o que a decidiu a acabar foi a impressão que eu me estava a diluir no banho, e que assim que ela tirasse a tampa eu iria pelo cano abaixo, ou pela janela, quem sabe? Ela preparou-se para a ejaculação: a sua mão não largava os testículos, os lábios estavam muito mais vezes perto da glande, e a língua enrolava-se-lhe à volta, num movimento que ainda hoje sou incapaz de compreender. Parecia-me que ela fazia com a língua um corneto daqueles que fazem os vendedores de castanhas assadas em Lisboa, com papel de jornal muito bem enrolado. Assim que sentiu as primeiras gotas enfiou o membro bem para o fundo da boca; não foi uma ejaculação: foi um big bang, uma decomposição, uma desagregação. Eu esvaziava-me como uma alma que parte para o céu.

Ela não teria necessitado de fazer um jantar excelente para acabar de me convencer, mas excelente estava ele: Amêijoas à Bulhão Pato, Lombo de Porco com Tapenade, uma lusa colecção de sobremesas. Entre o banho e o jantar estava uma garrafa de champagne num balde de gelo. Ela serviu-me uma flûte e põs um disco, um slow, a tocar. Lembro-me que era o “On the Waterfront”, pelo John Lee Hooker, um dos meus slows favoritos – o outro, se querem saber, é “Beautiful Tonight”, do Eric Clapton. Ainda estávamos nus, e foi assim que dançámos.

Pela janela víamos as luzes de Lisboa e de Cacilhas, e as luzes dos cacilheiros que os ligavam, hífens luminosos e longínquos como a minha vida antes de entrar naquela banheira. Perguntei-lhe pelos vizinhos, e ela disse-me que todo o prédio era dela, não havia vizinhos. As erecções iam e vinham, sem esforço e sem violência. Aproveitei uma delas para a levar para o sofá, suficientemente grande para receber uma equipe de rugby. Tinha a garrafa de champagne ao alcance da mão: deitei-lhe um pouco na vagina e bebi lentamente, indo buscar cada gota, onde quer que ela estivesse, com a língua; não melhorava significativamente o gosto do champagne, mas tinha efeitos muito positivos noutros planos. Bebíamos alternadamente pela garrafa: ela, eu, a vagina, eu, ela. Por vezes tocava-lhe levemente no clítoris com o gargalo e juntava-lhe imediatamente a língua, ou experimentava a bebida noutros sítios: no umbigo, no ventre, nos seios, entre os dedos dos pés, mas não era tão bom como aquela mistura doce e salgada, quente e fria, que vinha do seu sexo. Fizémos amor e fômos para a mesa e voltámos para o sofá e bebemos mais champagne e quando estávamos esgotados fomos para a cama, mas não adormecemos logo. Quando o sono chegou foi uma bóia de salvação. E ainda hoje não tenho a certeza se a ouvi de facto perguntar-me:
- Então, os meus olhos ? – Mas acho que foi um sonho.

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