23.10.04

Carta aberta a nenhuma senhora em especial, desde que seja jovem e bonita

Andas-me a boicotar a amizade, rapariga, e a vista, que os olhos também comem, salvo seja o devido respeito, e uma cara bonita como a tua, escondida atrás desse sorriso rasgado com que presenteias quem te vê, é um prazer real, um real prazer para olhos que olhem os teus, tão bonitos e tão pretos e tão sorridentes, eles também.

"Como tens passado, deste que te mandei passear?" não me perguntas tu, que não me ligas nenhuma, se não for eu a telefonar nem sei de ti, olha cá está o Kalimero de mim a falar outra vez... Como tenho passado, que se tem passado? Pouco: aquele preto que via pintado num muro à minha frente deixou de ser preto, é cinzento agora, e cinzento cada vez mais claro; amores foram e amores vieram, e foram, que por essas bandas as erupções andam intensas, mas breves - excepto a tua, claro, erupção que me deixou de rastos e deixou rastos de lava que, já frios, teimam em reaquecer e eu teimo em arrefecer outra vez, não vá o Diabo tecê-las, ele que tão activo anda agora, outra vez. "True love" dizia o Leonard Cohen, grande entendido nestas misturas de cul et coeur "leaves no traces" - então se calhar o meu por ti não foi um verdadeiro, que ainda por cá deixou traços, ténues, é certo, mas bonitos, como os teus olhos e os teus cabelos e a curva da cintura, tão harmoniosa.

O Outono chegou, é a estação dos vermelhos e dos amarelos, do fogo e do frio, da chuva e do sol, de tudo e do seu contrário - talvez seja por isso que gosto tanto dele, sobretudo por essa Europa fora, no Jura, por exemplo, onde tanto gostaria de ir contigo agora, comer trutas à Tante Yvonne, se ela ainda fosse viva, e voltar para casa à noite e já ter que acender a lareira, e beber um copo de branco aninhados nos braços um do outro enquanto falamos dos passeios do dia e dos de amanhã.

Eu, agora sem corpo onde repousar a mão, sem alma onde repousar o olhar, sem porto para esta ansiedade que me há-de consumir, sem a primeira metade para um tête-à-tête, só com a memória dos traços de lava que há meses, tantos meses (só meses?) me queimaram tanto, lembras-te? eu agora cá vou escrevinhando exercícios literários como este, e tendo ideias que ninguém quer, como de costume, e bebendo, de vez em quando, um bom vinho - pode viver-se sem mulher; pode - mais dificilmente é certo - viver-se sem barco; mas sem vinho não, porque, seja Deus agraciado, não há razão para isso, ainda sobram uns cobres para uma boa garrafa, se não for todos os dias, e ele não pode, ele, dizer "não, não estou em condições" de ser bebido por ti agora, como eu quisera beber-te outra vez e tu "não, agora não".

Enfim, como vês, as coisas vão andando - devagarinho e sozinho, é certo, mas na pelo menos boa direcção, tão certeiras como o inverno que há-de suceder ao outono, e a companhia à solidão e a esta de novo outra, e outra.

Aceita este beijinho que aqui te deixo, em público, como se estivéssemos no Cabo da Roca, ou à beira do Sena, ou no poço de um barco nos alíseos, e eu, tomado de amores, te agarrasse nos ombros e te pespegasse, grande, interminável, um beijinho nessa face de que tanto gosto, que tanto me falta, por vezes.

Teu

Luis

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.