5.4.05

Foi por isso

Foi por isso que hoje ele saíu do escritório mais cedo do que o habitual, de gabardine e chapéu Borsalino na cabeça, apesar do sol e do calor plácido do fim da tarde. Os prédios da Costa do Estoril, até ao forte de S. Julião, estão entre o côr-de-rosa e o laranja - uma côr que apesar de ser frequente nos dias de verão nunca deixava de o encher de um amor profundo por aquela baía. Duas raparigas, ambas na casa dos 30 anos, passam por ele.

-É bom, acordarmos às 3 da manhã com o desejo dele todo dentro de nós, não é? - perguntava uma.

Não ouviu a resposta: elas iam em sentido contrário e já estavam demasiado longe. Podia ter-lhe respondido que é bom, acordarmos às três da manhã e ter onde pôr o "desejo". Mas elas já iam longe, e tinham - pelo menos uma - quem lhes satisfizesse a noite. Mais tarde lembrou-se que talvez não tivesse sido "desejo" o termo que ela utilizara.

O chapéu, Borsalino de marca, é castanho e de feltro espesso. Foi-lhe deixado pelo pai, que morreu há pouco. Enche-o de calor, tal como a gabardine.

II

Por isso hoje saíu do escritório mais cedo, de chapéu Borsalino na cabeça e gabardine; as pessoas com quem se cruza estão de T-shirt, e falam de amor, de desejo, de como é bom não estar sozinho. Ele sabe-o; por isso, cada vez que chove em Madrid põe o chapéu e a gabardine, porque continua a amá-la. Há pouco mais de um ano ela dissera-lhe que não o queria ver, "nunca mais!".

- Nunca mais! Cheiras a morte, pareces um andaime de lágrimas. - Era espanhola e ele chamava-lhe Negra, por causa dos cabelos pretos como um dia de chuva. Quase todas as semanas ia a Madrid vê-la. Desde a separação continuava a ver o boletim meteorológico de Espanha, e vestia-se como se estivesse com ela, naqueles braços franzinos mas fortes, como se tivesse a seu lado o sorriso vivo dela, como se tivesse com ele o desejo que ela lhe despertava, quando voltavam para casa depois de uma noite de copos e riso e conversa e reencontro.

III

Está calor; a luz enche os prédios da Linha com uma côr que ele vê todos os dias semelhantes ao de hoje, mas na qual não reparava há muito tempo. As pessoas passam por ele, falam de amor, da vida, de tudo e de nada, fazem planos para a noite, ou para amanhã, sábado. Ele pensa nela, no restaurante onde se conheceram através de um amigo comum, na paixão súbita que sentiram um pelo outro, naquele ano e meio em que se tinham visto quase todas as semanas, nas longas caminhadas que faziam quando ela vinha a Cascais ou ele ia a Madrid, no seu riso, que saía dela como uma onda que se enrola antes de chegar à praia. Há um ano que o deixara, um ano negro como negros eram os cabelos e luminosos os olhos, o olhar. Um ano de solidão, um ano perdido - "estar sozinho é como viver metade", pensava. "Tudo é metade, excepto o sofrimento, que é a dobrar".

As pessoas passam por ele; algumas riem-se da gabardine, e do chapéu, um verdadeiro Borsalino; no largo da Câmara Municipal um casal disputa-se. Ele está dentro do carro e ela, de pé do lado de fora, diz-lhe:
- Não te vás embora, John, não te vás embora. É uma estupidez, o que estás a fazer. I didn't mean what I said. - Falava metade em português, metade em inglês.
- Devia ter feito isto há mais tempo - responde o homem. E arranca bruscamente com o carro, deixando-a ali especada, magra, loira, vazia.

Está calor. De vez em quando pensa que só ouve fragmentos dos diálogos, que nada sabe daquilo que o rodeia. A sua vida é um fragmento, ele próprio não passa de um fragmento. Não conhece ninguém, nunca foi a um bar beber um copo quando ela não está cá. Não sabe sequer o tempo que fará amanhã em Cascais - só conhece a previsão para Madrid. Não é de onde está, como a roupa que traz.

Quando chegou ao alto da Avenida D. Carlos I despiu a gabardine, e juntamente com o chapéu atirou-a ao mar.

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