7.8.07

Voltar atrás

A marinha - e particularmente a marinha antiga - está cheia de mitos, tabus, superstições e manias. A maior parte deles fazem sentido, ou têm uma justificação racional: não se larga a uma sexta-feira porque era o dia de salário dos marinheiros, e se o navio largasse nesse dia não teria metade da tripulação a bordo; e não se levam flores (ou plantas verdes, por extensão) para bordo pela razão óbvia que a água doce é um bem escasso. O tabu do "coelho" - em certas marinhas, como a francesa, a simples menção da palavra é proibida - também se explica: no tempo em que os navios eram em madeira, um coelho podia levá-los ao fundo em meia-dúzia de semanas.

Há duas manias de que gosto particularmente no mar - e que são por vezes antagónicas. Uma é a da preparação (não é bem uma mania, é mais uma necessidade imperiosa): navegar é antecipar, e uma viagem prepara-se ao pormenor; desde a comida ao material, das rotas aos portos alternativos, da roupa ao combustível, tudo tem que ser calculado (em geral com uma boa margem de segurança), previsto, pesado, e as decisões tomadas não só em função do que é hoje, mas também do que pode ser amanhã.

A outra é que não se volta para trás (isto é, para o porto de onde acabou de se largar). Tenho inúmeras histórias que ilustram uma e outra, algumas passadas comigo, outras com amigos: a de Rupert, um senhor de setenta e tal anos que navegava com a mulher e que um dia, à saída da barra de Lisboa partiu uma costela, ou duas, creio - e que mesmo assim continuou até Ponta Delgada, sete dias de dores alucinantes (já me aconteceu o mesmo, uma vez a caminho das Canárias, e sei como são, essas dores), porque "não gosto de voltar para trás". Ou Hervé, que mais tarde viria a trabalhar para mim, nos Açores: partiu o leme do seu Muscadet a um dia das Canárias mas preferiu continuar até ao Brasil (aterrou em Fernando Noronha) - uma travessia do Atlântico sozinho num bote daqueles já é difícil, imaginem com um leme improvisado.

Já me aconteceu sair de Cherbourg num barco que não estava preparado nem para ir para a doca ao lado - e a viagem que fiz até Dunkerke foi fascinante: tudo o que podia correr mal correu pior, e nada do que poderia ter corrido bem durou mais do que meia dúzia de horas.

A verdade é que não se começa uma viagem sem estar preparado - mas se por acaso se começa, ou se algo acontece, não se volta para trás. Vai-se até ao fim.

Podem retorquir que o meu respeito pelas regras é relativo, sempre foi, e que se estou vivo é - por exemplo - porque quando largamos de Nakhodka e o navio começou a meter água às toneladas o comandante, contra a opinião do imediato, decidiu voltar para trás. Tivemos que encalhar para não ir ao fundo, numa água que estava a dois graus negativos.

Mas a verdade é que se a viagem começou, acaba-se, se possível no porto de destino - ou pelo menos num porto diferente daquele de que se largou.

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