1.8.07

Vocabulário náutico, biografias e hubris

Nunca fui muito dado à leitura de biografias, ou - ainda menos - auto-biografias: sempre pensei ser melhor vivê-las do que lê-las.

Pela mesma razão nunca tive grandes heróis, e ainda hoje, depois das inúmeras pancadas do martelo do tempo me terem feito mudar de atitude, não é com facilidade que escolho um herói, um modelo, ou que assumo ser "fã" de quem quer que se seja.

Uma das raras excepções é, claro, Eric Tabarly. Não o conheci pessoalmente mas - e era uma das suas grandes qualidades, acolher toda a gente a bordo - naveguei com muitos dos seus tripulantes.

Há uma diferença, só uma, entre "pairar" e "derivar": pairar é uma situação voluntária, e derivar não. Um navio pode "pairar" por muitas e variadas razões - desde reparar uma máquina até (na marinha de recreio, claro), permitir um almoço tranquilo ou um banho no mar alto à tripulação. Já a deriva resulta de um acidente.

Durante a sua primeira Transat (uma regata em solitário, numa época em que a tecnologia da navegação em solitário não era o que é hoje), Eric Tabarly decidiu abandonar a prova. Estava a algumas centenas de milhas da chegada, não havia vento, tinha passado dias sem dormir devido a uma tempestade - resumindo: arreou pano e foi dormir.

Meia dúzia de horas depois acordou, e mudou de opinião: passo alguns pormenores, mas içou o pano, certificou-se da posição, e reentrou na regata.

Ganhou. Não, a meu ver, apesar de ter dormido meia-dúzia de horas, mas por causa delas. Às vezes é preciso saber pairar, e - sobretudo - saber recomeçar. É uma questão de auto-confiança, de hubris. Não estamos nisto para participar...

Nunca estive à deriva. Mas já pairei algumas vezes - em terra, claro; no mar já me aconteceu algumas vezes ficar à deriva, felizmente por curtos períodos e sem consequências de maior..

Cioran tem um aforismo magnífico cuja ideia geral é - de memória - "é espantoso que a perspectiva de ter um biógrafo não impeça ninguém de viver". Tabarly não lia Cioran. E agora, que a perspectiva de ter um biógrafo está definitivamente afastada - Allah u Aqbar - apercebo-me, uma vez mais, da sorte que tenho: ser capaz de acordar, içar pano, continuar a regata - e não ter uma biografia.

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