Uma vez ofereceram-me um kit completo de casa de banho: um sabonete, uma pasta de dentes, um toalhete, uma escova de dentes.
Como eu lavo os dentes e tomo duche, impreterivelmente, uma vez por semana (mesmo quando não é realmente preciso) não interpretei esse presente como uma indicação qualquer de que devia lavar-me com mais frequência (conheço muita gente que toma banho duas ou mesmo três vezes por semana. Quanto a mim é um desperdício de água).
Uma vez, devo reconhecê-lo, ofereci uma pasta de dentes – mas só a pasta, note-se – a uma jovem senhora que conheci na Rússia. Ela era linda, linda, linda de se morrer e pedir mais, mas não devia lavar os dentes havia muito tempo, porque os tinha verdes, um verde-escuro como as algas que, em miúdo, tanto me impressionavam na Praia das Avencas. Sentiu-se ofendida, mas eu expliquei-lhe, sem agressividade nem desprezo, que sendo ela bonita como era, os dentes esverdeados estragavam tudo. Amuou, mas enfim, lá aceitou, e ao fim de três ou quatro dias tinha os dentes reluzentes.
Foi uma das minhas maiores paixões, apesar de não me ser muito fiel. Aliás, não era nada fiel, e ainda menos o foi a partir do dia em que os dentes lhe ficaram brancos. Mas eu não me importava: na realidade, estava ali só de passagem, e nunca, nunca, deixei as paixões toldar-me o raciocínio. Claro que é sempre motivo de orgulho, para um homem, apresentar-se frente aos seus amigos (ou colegas, naquele caso) com uma mulher bonita – e de vergonha se essa mulher o trair. Mas eu não me importava: tomara eles, serem enganados por uma mulher tão perfeita como era a minha Viktoria. As deles também os enganavam, de certeza, mas eram muito mais feias.
Acabámos por ficar naquele porto quase cinco meses, e a minha paixão pela Viktoria nunca desfaleceu. Amava-a muito, muito – mas não loucamente: quando me pediu para casar com ela, porque queria sair da Rússia, falei-lhe no Dostoievski, no Pushkin (ela costumava declamar-me poemas dele, em Russo. Não percebia nada, mas achava muito bonito, muito comovente), no Maïakovski, no Gogol (não gostava, nunca gostei, mas foi o que me ocorreu), no Tolstoi, na história grandiosa do país dela, e disse-lhe que não. Claro que quando me vim embora lhe ofereci uma máquina fotográfica, uma Zenith.
E às minhas outras “namoradas” também ofereci qualquer coisa de valioso - na verdade, as “tropelias” da Viktoria a certa altura começaram a incomodar-me, mas não conseguia separar-me dela: era bonita demais, e era actriz, representava muito bem, lia os poemas do Pushkin com uma emoção fora do comum – imaginem, para eu não perceber nada e mesmo assim ficar comovido... Por isso resolvi arranjar outra companheira, para que os meus colegas deixassem de se rir de mim.
A primeira que me ocorreu foi a mulher do padeiro, uma senhora um bocadinho gorda e muito “dada”, mas depois pensei que não ficava bem, namoriscar com a mulher de um colega de bordo, mesmo que todos o fizessem. Acabei por optar por uma senhora da Seaman’s House, muito grande e com um nariz um bocadinho cavalar, mas enfim, boa companhia. E essa nunca me pediu em casamento, reparem – aliás, nem queria aceitar o meu presente de despedida, mas eu lá insisti e ela acabou por escolher um gravador de fitas, não sei quantas pistas, uma coisa moderna e sofisticada para a altura, considerando que estávamos na Rússia soviética.
A verdade é que gosto de lavar os dentes, quando acordo, todos os sábados de manhã, logo a seguir ao duche. Escolho muito bem a pasta dentífrica – um tubo dura quase um ano, mais vale perder um bocadinho de tempo e escolher uma boa a passar um ano inteiro com uma coisa qualquer horrível. Claro que me podem perguntar: “porque não compras uma de que tenhas gostado?”. “Simples”, responderia: “porque gosto de variar”.
É por isso que, a seguir ao duche, vou dar um passeio de bicicleta - mas raramente repito um itinerário inteiro: mudo sempre qualquer coisa, mesmo se o trajecto geral (sair de casa, ir até ao Guincho e voltar) é o mesmo todas as semanas, quer chova quer faça sol.
Não gosto de monotonia, na minha vida, e por isso não sou, por exemplo, casado – aliás não me importei nada, quando a senhora que me ofereceu o kit de banho se foi embora, ao fim de quase um ano de vida comum: por muito que eu gostasse dela, e gostava, a ideia de acordar todos os dias com a mesma pessoa ao lado fazia-me calafrios.
Agora frequento uma prostituta: é verdade que é a mesma todas as quartas-feiras – mas, reconhecerão, uma vez por semana não é a mesma coisa que todos os dias. E eu gosto de variar, mas dentro de certos limites, claro. Não é a mesma coisa, reconheço: a vida de família falta-me, e chego mesmo, por vezes, a sofrer um bocadinho com a solidão. Mas faço os possíveis para que passem depressa, esses momentos de dor e lágrimas. Tento não me lembrar do passado, não pensar na Viktoria, nem na senhora da pasta de dentes – cozinhava tão bem, não imaginam, e era culta, tinha um sentido de humor magnífico – não pensar nas conversas sobre literatura com as quais aprendia tantas coisas tão bonitas, e olho para a frente, só para a frente. “Para a frente é que é o caminho”, dizia o meu pai, quando qualquer coisa lhe corria mal (o que era frequente, infelizmente).
E eu sigo os conselhos dele: olhar para a frente, não para trás, nem para os lados, nem para dentro; e avançar, avançar sempre, “contra os canhões, marchar, marchar”, não é isso que diz o nosso hino nacional?
Como eu lavo os dentes e tomo duche, impreterivelmente, uma vez por semana (mesmo quando não é realmente preciso) não interpretei esse presente como uma indicação qualquer de que devia lavar-me com mais frequência (conheço muita gente que toma banho duas ou mesmo três vezes por semana. Quanto a mim é um desperdício de água).
Uma vez, devo reconhecê-lo, ofereci uma pasta de dentes – mas só a pasta, note-se – a uma jovem senhora que conheci na Rússia. Ela era linda, linda, linda de se morrer e pedir mais, mas não devia lavar os dentes havia muito tempo, porque os tinha verdes, um verde-escuro como as algas que, em miúdo, tanto me impressionavam na Praia das Avencas. Sentiu-se ofendida, mas eu expliquei-lhe, sem agressividade nem desprezo, que sendo ela bonita como era, os dentes esverdeados estragavam tudo. Amuou, mas enfim, lá aceitou, e ao fim de três ou quatro dias tinha os dentes reluzentes.
Foi uma das minhas maiores paixões, apesar de não me ser muito fiel. Aliás, não era nada fiel, e ainda menos o foi a partir do dia em que os dentes lhe ficaram brancos. Mas eu não me importava: na realidade, estava ali só de passagem, e nunca, nunca, deixei as paixões toldar-me o raciocínio. Claro que é sempre motivo de orgulho, para um homem, apresentar-se frente aos seus amigos (ou colegas, naquele caso) com uma mulher bonita – e de vergonha se essa mulher o trair. Mas eu não me importava: tomara eles, serem enganados por uma mulher tão perfeita como era a minha Viktoria. As deles também os enganavam, de certeza, mas eram muito mais feias.
Acabámos por ficar naquele porto quase cinco meses, e a minha paixão pela Viktoria nunca desfaleceu. Amava-a muito, muito – mas não loucamente: quando me pediu para casar com ela, porque queria sair da Rússia, falei-lhe no Dostoievski, no Pushkin (ela costumava declamar-me poemas dele, em Russo. Não percebia nada, mas achava muito bonito, muito comovente), no Maïakovski, no Gogol (não gostava, nunca gostei, mas foi o que me ocorreu), no Tolstoi, na história grandiosa do país dela, e disse-lhe que não. Claro que quando me vim embora lhe ofereci uma máquina fotográfica, uma Zenith.
E às minhas outras “namoradas” também ofereci qualquer coisa de valioso - na verdade, as “tropelias” da Viktoria a certa altura começaram a incomodar-me, mas não conseguia separar-me dela: era bonita demais, e era actriz, representava muito bem, lia os poemas do Pushkin com uma emoção fora do comum – imaginem, para eu não perceber nada e mesmo assim ficar comovido... Por isso resolvi arranjar outra companheira, para que os meus colegas deixassem de se rir de mim.
A primeira que me ocorreu foi a mulher do padeiro, uma senhora um bocadinho gorda e muito “dada”, mas depois pensei que não ficava bem, namoriscar com a mulher de um colega de bordo, mesmo que todos o fizessem. Acabei por optar por uma senhora da Seaman’s House, muito grande e com um nariz um bocadinho cavalar, mas enfim, boa companhia. E essa nunca me pediu em casamento, reparem – aliás, nem queria aceitar o meu presente de despedida, mas eu lá insisti e ela acabou por escolher um gravador de fitas, não sei quantas pistas, uma coisa moderna e sofisticada para a altura, considerando que estávamos na Rússia soviética.
A verdade é que gosto de lavar os dentes, quando acordo, todos os sábados de manhã, logo a seguir ao duche. Escolho muito bem a pasta dentífrica – um tubo dura quase um ano, mais vale perder um bocadinho de tempo e escolher uma boa a passar um ano inteiro com uma coisa qualquer horrível. Claro que me podem perguntar: “porque não compras uma de que tenhas gostado?”. “Simples”, responderia: “porque gosto de variar”.
É por isso que, a seguir ao duche, vou dar um passeio de bicicleta - mas raramente repito um itinerário inteiro: mudo sempre qualquer coisa, mesmo se o trajecto geral (sair de casa, ir até ao Guincho e voltar) é o mesmo todas as semanas, quer chova quer faça sol.
Não gosto de monotonia, na minha vida, e por isso não sou, por exemplo, casado – aliás não me importei nada, quando a senhora que me ofereceu o kit de banho se foi embora, ao fim de quase um ano de vida comum: por muito que eu gostasse dela, e gostava, a ideia de acordar todos os dias com a mesma pessoa ao lado fazia-me calafrios.
Agora frequento uma prostituta: é verdade que é a mesma todas as quartas-feiras – mas, reconhecerão, uma vez por semana não é a mesma coisa que todos os dias. E eu gosto de variar, mas dentro de certos limites, claro. Não é a mesma coisa, reconheço: a vida de família falta-me, e chego mesmo, por vezes, a sofrer um bocadinho com a solidão. Mas faço os possíveis para que passem depressa, esses momentos de dor e lágrimas. Tento não me lembrar do passado, não pensar na Viktoria, nem na senhora da pasta de dentes – cozinhava tão bem, não imaginam, e era culta, tinha um sentido de humor magnífico – não pensar nas conversas sobre literatura com as quais aprendia tantas coisas tão bonitas, e olho para a frente, só para a frente. “Para a frente é que é o caminho”, dizia o meu pai, quando qualquer coisa lhe corria mal (o que era frequente, infelizmente).
E eu sigo os conselhos dele: olhar para a frente, não para trás, nem para os lados, nem para dentro; e avançar, avançar sempre, “contra os canhões, marchar, marchar”, não é isso que diz o nosso hino nacional?
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