Sou um homem regrado, simples. Alguns, eu sei, dizem nas minhas costas que sou simplório e obtuso. Eu não acho. Mas enfim, cada um tem direito a ter a sua opinião. Gosto de lavar a loiça de manhã, quando me levanto, antes do duche; e é assim que os meus dias começam, todos: a loiça da véspera, um duche (que demora em média doze, treze minutos, raramente mais ou menos), a barba, o desodorizante, o pequeno almoço: uma tigela de cereais, um café com duas colheres de açúcar, uma peça de fruta.
Depois visto-me: camisa branca, calças cinzento escuro no inverno, beige claro no verão, sapatos pretos de tipo inglês (conheço pessoas que vão trabalhar de sapatos castanhos, ou de mocassins. Acho um hábito criticável, apesar de não dizer nada), blazer azul. Tenho dois blazers e duas calças de cada um dos tipos acima mencionados, que alterno diariamente. E tenho cinco camisas brancas, uma por dia. Tenho igualmente cinco gravatas, mas isso não é importante, porque raramente as sujo. Ao sábado levo a roupa à lavandaria (menos o blazer e as gravatas, naturalmente); engraxo os sapatos - em casa, claro, custa-me gastar dois euros com uma coisa que apesar de tão simples dá tanto prazer.
Às sextas-feiras bebo uma ginginha e vou jantar à Casa do Alentejo: são ambas na rua das Portas de Santo Antão, o que é prático - tanto mais que não moro muito longe. Posso ir e voltar a pé, poupando assim o dinheiro do autocarro ou, melhor ainda, do táxi. Tenho poucos amigos, e, fora do serviço evito os colegas (às vezes parece-me que eles também me evitam, mas não tenho a certeza). De resto, a minha vida é, como disse, simples, ordenada. Gosto de ler - tenho os livros todos de Margarida Rebelo Pinto, por exemplo; já tentei ler os de outra autora, chamada Mafalda Ivo Cruz (porque é que toda a gente tem três nomes, no nosso país? Eu não: assino sempre com dois, o primeiro e o último. Ninguém tem nada que saber quem é a minha família), mas não consegui: achei as frases demasiado curtas e as ideias impenetráveis. Também gosto de música: os Beatles, Elton John, Britney Spears. Não gosto muito daqueles cantores a que os pseudo-intelectuais do nosso país chamam "pimbas": as melodias são agradáveis, mas as alusões são picantes demais. Não gosto. Ainda por cima ficam-me no ouvido dias e dias, não consigo cantarolar outra coisa. É por isso que não os oiço por querer. Só sem querer.
Sempre foi assim, desde que os meus pais morreram num acidente de aviação. O avião caiu, e eu fiquei com a casa e com o dinheiro do seguro (para além da herança, claro. Os meus pais eram muito poupados, guardavam muito dinheiro porque, diziam-me sempre, "pode acontecer qualquer coisa"). Ainda não se sabe se foi uma bomba ou uma avaria. Para a companhia era importante, porque aparentemente os valores das indemnizações são diferentes. Acabaram por nos dar um valor intermédio, mas eu não prestei muita atenção; de qualquer maneira era muito dinheiro. Ao princípio fiquei triste, mas agora, com o passar dos anos, já não penso nisso. Excepto quando os colegas troçam de mim, no serviço: a verdade é que não preciso de trabalhar, tenho que chegue até ao fim dos meus dias. Mas em casa aborreço-me, apesar dos livros e da música.
Uma vez houve uma mudança: conheci uma rapariga alemã. Estávamos os dois no eléctrico (às vezes gosto de passear nos eléctricos de Lisboa. São bonitos por dentro e por fora e abanam tanto que parece que têm vida, ou que estão a dançar sozinhos - se bem toda a gente dance também, dentro deles). Ela começou a olhar para mim, saiu na mesma paragem que eu e perguntou-me qualquer coisa - uma informação, ou o nome de uma rua, não me lembro.
Na verdade não me lembro nada de como é que A. veio parar a minha casa, mas lembro-me de como veio para o meu quarto: a lâmpada do quarto dela fundiu-se (isto é o que ela me disse, ainda hoje me pergunto se ela não terá feito de propósito - apesar de não saber como se faz para fundir uma lâmpada). Bateu-me à porta mas entrou imediatamente e viu-me a masturbar-me (é com uma certa vergonha que reconheço: masturbo-me todos os dias, antes de adormecer). Sorriu e perguntou-me:
- Do you need help? (Falávamos em inglês).
Como podem imaginar fiquei extremamente embaraçado; mas ela despiu-se num ápice e veio para a cama comigo. Não foi a minha primeira experiência sexual - já tinha tido duas namoradas, e de vez em quando (muito raramente, esclareço) visito uma prostituta do Cais do Sodré (sempre a mesma, uma rapariga jovem e muito magra, mas que tem a vantagem, sobre outras que também experimentei, de não falar muito. Desconfio que se droga, mas não me importo: uso sempre uma protecção). Os meus namoros - não gosto de dizer "relações", como eles dizem lá no serviço - nunca duraram muito tempo: as namoradas foram-se embora ao fim de meia-dúzia de meses.
Mas A. era diferente de tudo o que eu conhecia e imaginara, até a encontrar. Parecia-se mais com um filme pornográfico que fui ver uma vez: punha-se por cima de mim, chupava-me o ..., desafiava-me a fazer aquilo fora da cama. Às vezes até me acordava só para fazer sexo. Comecei a chegar tarde ao trabalho e a andar com olheiras; os meus colegas descobriram tudo porque um dia apareci com uma marca de dentada no pescoço: A. tinha-me mordido com mais força do que o habitual e deixou uma marca. Toda a gente se riu de mim, claro. Mas eu deixei-os rir e fiz de conta que não ouvia.
As minhas zangas com A. começaram muito depressa, por causa da loiça: ela não se importava nada de deixar a loiça por lavar, e muitas vezes dizia-me:
- Forget the dishes, come and f... me.
Mas eu não gostava de sair de casa com a loiça suja e fazia-lhe ouvidos de mercador. Ela passou a vir para a cozinha comigo e a fazer-me coisas enquanto eu tentava lavar, secar, arrumar. Claro que era impossível; fartei-me de partir copos - o que a fazia rir a bandeiras despregadas, e a mim me preocupava, não fosse ela cortar-se. De modo acabávamos sempre em cima da mesa, ou às vezes mesmo no duche. Ela ensaboava-me e eu excitava-me de uma maneira que era impossível resistir. Mas com aquilo ensaboado demora mais tempo e ela, claro, achava muito melhor (eu também. Para o fim já estava a gostar, e até me estava a habituar àquela vida sem regras).
Mas a verdade é que um dia, sem eu mesmo saber porquê, comecei a lavar a loiça à noite, antes de ir para a cama. A. riu-se imenso, e perguntou-me a razão. Mas eu não sabia, pronto. Comecei a ter vontade de lavar a loiça à noite, enquanto ela via filmes na televisão. Era loira, e eu às vezes ia espreitar-lhe os cabelos que caíam pelas costas do sofá. Quando ela se apercebia da minha presença chamava-me, mas eu mostrava-lhe as mãos molhadas e cheias de detergente e voltava para a cozinha.
Um dia cheguei a casa e vi logo que ela se tinha ido embora. Em cima da cama estava um bocado de papel que dizia: "A loiça lava-se de manhã. Adeus". Assim, em português e sem um único erro. Nem sabia que ela falava português. Só se alguém lhe escreveu aquilo, não sei. Ao princípio fiquei triste; mas pouco depois recomecei a minha rotina habitual, e agora só penso nela todos os dias antes de adormecer.
Depois visto-me: camisa branca, calças cinzento escuro no inverno, beige claro no verão, sapatos pretos de tipo inglês (conheço pessoas que vão trabalhar de sapatos castanhos, ou de mocassins. Acho um hábito criticável, apesar de não dizer nada), blazer azul. Tenho dois blazers e duas calças de cada um dos tipos acima mencionados, que alterno diariamente. E tenho cinco camisas brancas, uma por dia. Tenho igualmente cinco gravatas, mas isso não é importante, porque raramente as sujo. Ao sábado levo a roupa à lavandaria (menos o blazer e as gravatas, naturalmente); engraxo os sapatos - em casa, claro, custa-me gastar dois euros com uma coisa que apesar de tão simples dá tanto prazer.
Às sextas-feiras bebo uma ginginha e vou jantar à Casa do Alentejo: são ambas na rua das Portas de Santo Antão, o que é prático - tanto mais que não moro muito longe. Posso ir e voltar a pé, poupando assim o dinheiro do autocarro ou, melhor ainda, do táxi. Tenho poucos amigos, e, fora do serviço evito os colegas (às vezes parece-me que eles também me evitam, mas não tenho a certeza). De resto, a minha vida é, como disse, simples, ordenada. Gosto de ler - tenho os livros todos de Margarida Rebelo Pinto, por exemplo; já tentei ler os de outra autora, chamada Mafalda Ivo Cruz (porque é que toda a gente tem três nomes, no nosso país? Eu não: assino sempre com dois, o primeiro e o último. Ninguém tem nada que saber quem é a minha família), mas não consegui: achei as frases demasiado curtas e as ideias impenetráveis. Também gosto de música: os Beatles, Elton John, Britney Spears. Não gosto muito daqueles cantores a que os pseudo-intelectuais do nosso país chamam "pimbas": as melodias são agradáveis, mas as alusões são picantes demais. Não gosto. Ainda por cima ficam-me no ouvido dias e dias, não consigo cantarolar outra coisa. É por isso que não os oiço por querer. Só sem querer.
Sempre foi assim, desde que os meus pais morreram num acidente de aviação. O avião caiu, e eu fiquei com a casa e com o dinheiro do seguro (para além da herança, claro. Os meus pais eram muito poupados, guardavam muito dinheiro porque, diziam-me sempre, "pode acontecer qualquer coisa"). Ainda não se sabe se foi uma bomba ou uma avaria. Para a companhia era importante, porque aparentemente os valores das indemnizações são diferentes. Acabaram por nos dar um valor intermédio, mas eu não prestei muita atenção; de qualquer maneira era muito dinheiro. Ao princípio fiquei triste, mas agora, com o passar dos anos, já não penso nisso. Excepto quando os colegas troçam de mim, no serviço: a verdade é que não preciso de trabalhar, tenho que chegue até ao fim dos meus dias. Mas em casa aborreço-me, apesar dos livros e da música.
Uma vez houve uma mudança: conheci uma rapariga alemã. Estávamos os dois no eléctrico (às vezes gosto de passear nos eléctricos de Lisboa. São bonitos por dentro e por fora e abanam tanto que parece que têm vida, ou que estão a dançar sozinhos - se bem toda a gente dance também, dentro deles). Ela começou a olhar para mim, saiu na mesma paragem que eu e perguntou-me qualquer coisa - uma informação, ou o nome de uma rua, não me lembro.
Na verdade não me lembro nada de como é que A. veio parar a minha casa, mas lembro-me de como veio para o meu quarto: a lâmpada do quarto dela fundiu-se (isto é o que ela me disse, ainda hoje me pergunto se ela não terá feito de propósito - apesar de não saber como se faz para fundir uma lâmpada). Bateu-me à porta mas entrou imediatamente e viu-me a masturbar-me (é com uma certa vergonha que reconheço: masturbo-me todos os dias, antes de adormecer). Sorriu e perguntou-me:
- Do you need help? (Falávamos em inglês).
Como podem imaginar fiquei extremamente embaraçado; mas ela despiu-se num ápice e veio para a cama comigo. Não foi a minha primeira experiência sexual - já tinha tido duas namoradas, e de vez em quando (muito raramente, esclareço) visito uma prostituta do Cais do Sodré (sempre a mesma, uma rapariga jovem e muito magra, mas que tem a vantagem, sobre outras que também experimentei, de não falar muito. Desconfio que se droga, mas não me importo: uso sempre uma protecção). Os meus namoros - não gosto de dizer "relações", como eles dizem lá no serviço - nunca duraram muito tempo: as namoradas foram-se embora ao fim de meia-dúzia de meses.
Mas A. era diferente de tudo o que eu conhecia e imaginara, até a encontrar. Parecia-se mais com um filme pornográfico que fui ver uma vez: punha-se por cima de mim, chupava-me o ..., desafiava-me a fazer aquilo fora da cama. Às vezes até me acordava só para fazer sexo. Comecei a chegar tarde ao trabalho e a andar com olheiras; os meus colegas descobriram tudo porque um dia apareci com uma marca de dentada no pescoço: A. tinha-me mordido com mais força do que o habitual e deixou uma marca. Toda a gente se riu de mim, claro. Mas eu deixei-os rir e fiz de conta que não ouvia.
As minhas zangas com A. começaram muito depressa, por causa da loiça: ela não se importava nada de deixar a loiça por lavar, e muitas vezes dizia-me:
- Forget the dishes, come and f... me.
Mas eu não gostava de sair de casa com a loiça suja e fazia-lhe ouvidos de mercador. Ela passou a vir para a cozinha comigo e a fazer-me coisas enquanto eu tentava lavar, secar, arrumar. Claro que era impossível; fartei-me de partir copos - o que a fazia rir a bandeiras despregadas, e a mim me preocupava, não fosse ela cortar-se. De modo acabávamos sempre em cima da mesa, ou às vezes mesmo no duche. Ela ensaboava-me e eu excitava-me de uma maneira que era impossível resistir. Mas com aquilo ensaboado demora mais tempo e ela, claro, achava muito melhor (eu também. Para o fim já estava a gostar, e até me estava a habituar àquela vida sem regras).
Mas a verdade é que um dia, sem eu mesmo saber porquê, comecei a lavar a loiça à noite, antes de ir para a cama. A. riu-se imenso, e perguntou-me a razão. Mas eu não sabia, pronto. Comecei a ter vontade de lavar a loiça à noite, enquanto ela via filmes na televisão. Era loira, e eu às vezes ia espreitar-lhe os cabelos que caíam pelas costas do sofá. Quando ela se apercebia da minha presença chamava-me, mas eu mostrava-lhe as mãos molhadas e cheias de detergente e voltava para a cozinha.
Um dia cheguei a casa e vi logo que ela se tinha ido embora. Em cima da cama estava um bocado de papel que dizia: "A loiça lava-se de manhã. Adeus". Assim, em português e sem um único erro. Nem sabia que ela falava português. Só se alguém lhe escreveu aquilo, não sei. Ao princípio fiquei triste; mas pouco depois recomecei a minha rotina habitual, e agora só penso nela todos os dias antes de adormecer.
Luís, se o seu objectivo é demonstrar as vantagens da disciplina doméstica, informo-o de que, na minha condição de dona de casa, não estou convencida. Há rotinas que só não enlouquecem completamente «desrotinadas». É como com as pessoas… ;-D
ResponderEliminarNão, Luísa, infelizmente os meus contos não têm objectivos tão sofisticados. É só para demosntrar que a loiça é sempre um pomo de discórdia... :-)
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