9.11.08

Escultura, vida

Começo por me apresentar: chamo-me Martim, sou escultor. Não sei a minha idade. É-me indiferente, indefinida. O meu material de trabalho é a pedra: mármore, granito, xisto, basalto, quartzo; a matéria é a vida. "Vasto programa", dirão alguns. Eu não acho. A vida é uma coisa simples: nasce-se, estuda-se, trabalha-se, ama-se, morre-se (a ordem de alguns destes factores é indiferente).

É um programa relativamente limitado. O meu sucesso (sou um escultor reconhecido, ganhei vários prémios, represento o nosso país em exposições internacionais, chamam-me muitas vezes para programas de televisão) deve-se, penso, a esta capacidade para definir claramente os limites do meu tabalho e daquilo que quero exprimir.

Gosto da pedra, da sua inflexibilidade, da sua intolerância. Os outros artistas - escritores, poetas, fotógrafos, músicos - têm muito mais sorte; o material deles é soft, apaga-se e recomeça-se. A minha não: um erro e é todo o bloco que vai embora, ou para obras mais pequenas. A vida não é assim; aceita uma determinada quantidade de erros, de tentativas, e não é por isso que fica inutilizada. Parece-me. Não sei.

A verdade é que escrevo estas linhas porque me apareceu um problema novo: como transformar em pedra a solidão? Primeiro tentei aprender a chorar, o que consegui com uma relativa facilidade. Fiz uma lágrima, uma enorme lágrima: três metros por um, linda, toda em mármore. Mas essa lágrima (que hoje está exposta num jardim público da nossa cidade e é vista todas os dias por milhares de pessoas) não exprime o que quero dizer. A solidão não é isso, um bocado de mármore numa praça pública. É um peso a cada passo, um eco afónico, trocista que nos persegue onde quer que estejamos.

E isso eu não sei transformar em pedra.

6 comentários:

  1. Gostei muito deste texto, Luís, mas não vejo assim a solidão.
    Para mim, é como Chico Buarque descreveu:

    "Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos
    e procuramos em vão pela nossa alma".

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  2. Fugidia,
    reconheço - por modéstia, ou realismo? Em mim, andam sempre juntas estas duas - a superioridade da descrição de Chico Buarque. Vou tentar fazer melhor, da próxima vez. Mas não será fácil - imagine que eu me propunha ficar com os olhos verdes do senhor?

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  3. Solidões, se calhar, há muitas. Como há muitas formas de «companhia». E a que a Fugidia refere, descrita pelo Chico Buarque, é uma delas. Mas, numa outra perspectiva dos desencontros com a alma, também gosto do «eco afónico e trocista». Que, em pedra, só vejo representado pela falta dela. Talvez uma rocha carcomida de buracos, como um Emmental… (recordo que o eco também é trocista). :-D

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  4. Azuis!!!
    Azuis!!!!
    Humpfrrrt!

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  5. "A vida não é assim; aceita uma determinada quantidade de erros, de tentativas, e não é por isso que fica inutilizada" .. e parece-lhe muito bem Caro Luís :)
    A vida .. dá-nos até à infima oportunidade de resolver e seguir .. tristes os que o não conseguem aceitar.

    Gosto muito deste seu texto.
    Parabéns.

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  6. A mim parece-me que a solidão já é feita de pedra, por definição. A não ser quando a desejamos, e então é fluida, moldável.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.