Fiz uma pesquisa no blog e não encontrei este texto, já antigo. Se por acaso aí estiver, as minhas desculpas - e um obrigado antecipado por mo dizerem. Faz parte de uma série de textos com os quais procurei fechar a porta. Não sei se consegui; pelo menos terei tentado. A qualidade literária não será grande coisa; mas tem uma vantagem: é a reprodução fiel do que se passou.
Fizemos o trajecto de Mueda para Quissanga, onde devíamos apanhar o barco para a Grande Quirimba, a uma velocidade estonteante. Chovia como se as comportas do céu tivessem sido abertas por engano, depois de um período de falta de água. Os pneus estavam carecas e por duas vezes saí da estrada, como se estivesse a deslizar em manteiga. Não tinha o mais pequeno controle sobre carro até ele bater nos taludes que ladeavam a estrada e perder, progressivamente, velocidade. Uma vez, no Zaire, fiz uma viagem semelhante, só que não estava a chover e a velocidade era ainda maior.
O Governador ("La Force Tranquille du Manyema") quis fazer uma reunião num buraco qualquer 120 km a leste de Kindu, para mostrar a toda a gente que quem mandava era ele, e que Kabila não lhe metia medo. A reunião começou por estar marcada para uma quarta feira, mas por qualquer razão mudou para quinta. As peripécias começaram logo à partida: o "capitão" do ferry boat não apareceu, fez esperar sua majestade, foi despedido mas obrigado, naturalmente, a fazer a travessia. Íamos em dois jipes: num - convenientemente desnudado do emblema da Cruz Vermelha - o Governador e respectiva escolta, armada até aos dentes. O carro estava cheio a abarrotar, de fora só se viam os canos das Kalashes que sobressaíam da massa escura dos soldados. Noutro, o pessoal da Cruz Vermelha e eu.
Quando chegámos ao outro lado, o condutor do jipe do Governador disse-me que queria ir à frente e pediu-me para o seguir. Tentei fazê-lo e quase o consegui, mas foi o trajecto mais alucinante da minha vida: raramente íamos a menos de 120 numa picada cheia de buracos, com capim mais alto que os carros e exactamente da largura destes. Não tirei a mão da buzina desde que parti, com medo que uma criança se me atravessasse à frente.
Os Toyotas saltavam, dançavam, voavam por aquela picada fora e embora eu soubesse que as armas não se iam pôr a disparar sózinhas não conseguia impedir-me de pensar que uma granada ia cair, ou um soldado destravar a segurança e via constantemente à minha frente uma grande bola de fogo - e nós, no outro carro, alvo da fúria popular - o bem-amado Governador tinha, literalmente, explodido. Era coisa que ele parecia ir fazer a cada instante, o gajo era gordo, enorme, inchado ainda mais pelos 10% que comia da ajuda que nós levávamos para Kindu - coisa que escandalizou as chefias da Cruz Vermelha, coitadas, quando souberam.
Chegámos finalmente a Kalungo, ou coisa que o valha, não me lembro do nome. As outras agências, que não estavam em Kindu, tinham ido de avião. A excitação era enorme, os zairenses andavam cinzentos de medo e nós, os brancos, só por meias palavras percebemos que o Kabila estava perto, muito perto. A reunião foi nessa mesma tarde, e totalmente inútil. O objectivo era atribuir tarefas a cada uma das agências, mas ninguém ligava ao Governador, de qualquer forma. Ele queria igualmente explicar-nos que estávamos visivelmente a ajudar o Kabila e as consequências seriam graves. Nessa noite houve um jantar, no dia seguinte uma visita à aldeia e respectivo campo de aviação. Deixei lá um gajo nosso, Jean Longo, um homem extraordinário, corajoso e generoso como só os Zairenses sabem ser, quando querem e quando gostam das pessoas para quem o fazem.
Mas a excitação nas hostes zairenses estava a aumentar indisfarçavelmente e a seguir a um almoço apressado viémo-nos embora, ainda mais depressa do que fôramos. O batelão estava à nossa espera, com o capitão despedido a implorar clemência ao Governador e este a negá-la. Atravessámos para Kindu, fui para casa descansar e tentar repôr os meus orgãos internos nos respectivos lugares. Ao fim da tarde saí e fui para a beira do Rio, o grande rio. Era um daqueles crepúsculos africanos, mágicos, calmos, lindos, em que o dia parece parar e se interroga se deve deixar chegar a noite. O rio em Kindu tem quase um quilómetro de largura, e eu por ali me fiquei, a fumar um cigarro e a falar com o soldado que guardava, solitário, o cais. Estava tudo côr-de-laranja e a noite chegou, como de costume, com licença ou sem ela. Não devia estar ali, era perigoso passear na cidade mesmo de dia, quanto mais à noite, mas a calma e a beleza da tarde eram irresistíveis. O rio fluía, grande, largo, enorme, era sexta feira e parecia que o Kabila não o atravessaria antes do fim do século.
No sábado levantei-me muito cedo e fui para a rádio, como de costume. Estava à espera do resto do material rádio para instalar na agência e era preciso comunicar com Lubumbashi. Para grande espanto meu o Jean bateu-me à porta ainda não eram seis da manhã. Kabila tinha chegado a Kalungo na sexta feira logo depois de nós saírmos. Jean tinha-se safado num camião do exército que fugira logo após as habituais pilhagens. Estava a comunicar com Lubumbashi e a dar-lhes estas últimas novidades quando o tiroteio começou.
Jean foi esconder os jipes e eu fiquei na rádio. Era preciso decidir se o Dakota vinha para Kindu ou não. Às oito fui falar com o Governador, os tiros ainda estavam longe, do outro lado do rio, mas as tropas começavam a afluir. Ninguém gostava de nós, como de costume: é uma das ironias da ajuda humanitária, cada lado pensa que estamos a ajudar o outro - e inveja os nossos meios de comunicação, os nossos carros, o nosso dinheiro. Marie, a minha cozinheira, tremia. Mandei-a embora, e a todo o pessoal. O Governador queria que o Dakota viesse, mais para o levar a ele que para trazer o material, mas às nove e meia dei ordem ao avião para voltar para trás. Deu meia volta e cinco minutos depois um dos motores avariou e parou.
O tiroteio intensificava-se, as colunas de soldados que fugiam eram cada vez maiores, a pilhagem estava perto. Comecei a desmontar todo o material rádio que já tínhamos instalado. Tudo: a única coisa que não embalei mas desmontei e escondi foi o mastro da antena. Tudo o resto foi posto em caixas. A única pessoa que ficou comigo foi o Jean, que arriscava a vida se fosse apanhado ali. Mas ficou. E ajudou-me até eu lhe dar ordens terminantes para se ir embora. Era meio dia e era preciso tomar uma decisão quanto à evacuação: por estrada era impossível, mas eu hesitava em mandar vir um avião. Acabei por dizer que sim, o Gordo dizia-me que era possível. O King Air vinha para Kindu, ETA 4 da tarde. Havia lugar para mim e seis pessoas mais. Uma das minhas empregadas tinha seis filhos e um marido que era médico do Governador. Este queria vir mais o séquito todo. O tiroteio estava cada vez mais forte, mais próximo e o olhar dos soldados quando passavam à frente da delegação cada vez mais agressivo. Fui ao palácio falar com o gordo mas ele não desmordia: era ele que ia, mais o chefe de segurança dele, mais o chefe da polícia, mais não sei quem. Não havia lugar para a empregada, também não me lembro do nome dela.
Argumentei durante uma hora. O homem estava nervoso, tinha a Kalash ao lado e a certa altura pô-la no colo, não para me ameaçar mas porque estava inseguro. Ao fim de uma hora de conversa de chacha disse-lhe: "Monsieur le Gouverneur, agora eu não sou o representante de Cruz Vermelha e o senhor não é o Governador. Sou um homem a falar para outro homem. O que está em causa é saber se vamos salvar a vida de uma mulher e de alguns dos seus filhos ou se o vamos salvar a si, um homem, um soldado". A raiva transpareceu-lho no olhar e na resposta: "Fils de pute" foi a única coisa que me disse, baixinho. Depois de um longo silêncio continuou: "eu fico, ela vai, mas o meu chefe de segurança vai também e amnhã vêm-me buscar".
O mais agoniante foi assistir à senhora a escolher quais dos filhos levava, e a dizer adeus aos outros e ao marido.
Às três da tarde tinha tudo desmontado, empacotado e no jipe que tínhamos mantido. Fui buscar a senhora e segui para o palácio do Governador. O avião não havia maneira de chegar, já não tinha comunicação com eles. A espera foi interminável. Havia tiros por todos os lados. Eu queria ir para o aeroporto mas o gordo não me deixou, mandou-me esperar ali. A tensão era espessa, palpável, transmíssivel, podia cheirar-se e apalpar-se e tocar-se - e ouvir-se. Às quatro e meia consegui estabelecer contacto com o avião por VHF, estavam a quinze minutos e queriam saber se podiam aterrar. Perguntei ao gordo. Disse-me que sim e fez-me jurar que no dia seguinte o ia buscar a ele e ao resto do séquito - tinha sido uma das condições do deal, de qualquer forma. Que sim, claro; ele mandou-me esperar até termos o King Air à vista. Foi aí que arrancámos para o aeroporto. Devagar, muito devagar. As ruas estavam pejadas de soldados que olhavam para nós com uma fúria mal contida. A senhora fazia o que podia para acalmar os filhos e eu fazia o que podia para a acalmar a ela, que tinha deixado os dois mais velhos com o pai. O chefe da segurança acalmava-se com a pistola que levava na mão. Eu ia a guiar o carro, mas havia connosco um soldado para o levar de volta para o gordo. Não havia estradas, ele não o poderia utilizar para fugir.
O avião aterrou e nem desligou os motores: enfiámos as caixas todas lá para dentro, sob a vista dos soldados que enchiam o aeroporto como eu nunca o tinha visto. Fui o último a entrar, por uma questão de teatro ou de treino. Arrancámos e quando chegámos a Lubum bebi um grande, infinito whisky. Nunca mais voltei a Kindu; não sem como é que o Governador de lá saíu.
A nossa casa foi pilhada logo no dia seguinte, mas já lá não havia nada de valor. Das muitas críticas que recebi do pessoal do CICR que me substituiu em Lubum constava o facto de não ter o recibo do dinheiro que tinha deixado ao Jean.
Fiquei em Lubum mais um mês, até ser de novo evacuado, desta vez por estrada. Foi nesses dias que soube que um grupo de 19 padres e duas freiras que tinham passado dias e semanas a pedir-me para os ir buscar tinham sido mortos.
Fizemos o trajecto de Mueda para Quissanga, onde devíamos apanhar o barco para a Grande Quirimba, a uma velocidade estonteante. Chovia como se as comportas do céu tivessem sido abertas por engano, depois de um período de falta de água. Os pneus estavam carecas e por duas vezes saí da estrada, como se estivesse a deslizar em manteiga. Não tinha o mais pequeno controle sobre carro até ele bater nos taludes que ladeavam a estrada e perder, progressivamente, velocidade. Uma vez, no Zaire, fiz uma viagem semelhante, só que não estava a chover e a velocidade era ainda maior.
O Governador ("La Force Tranquille du Manyema") quis fazer uma reunião num buraco qualquer 120 km a leste de Kindu, para mostrar a toda a gente que quem mandava era ele, e que Kabila não lhe metia medo. A reunião começou por estar marcada para uma quarta feira, mas por qualquer razão mudou para quinta. As peripécias começaram logo à partida: o "capitão" do ferry boat não apareceu, fez esperar sua majestade, foi despedido mas obrigado, naturalmente, a fazer a travessia. Íamos em dois jipes: num - convenientemente desnudado do emblema da Cruz Vermelha - o Governador e respectiva escolta, armada até aos dentes. O carro estava cheio a abarrotar, de fora só se viam os canos das Kalashes que sobressaíam da massa escura dos soldados. Noutro, o pessoal da Cruz Vermelha e eu.
Quando chegámos ao outro lado, o condutor do jipe do Governador disse-me que queria ir à frente e pediu-me para o seguir. Tentei fazê-lo e quase o consegui, mas foi o trajecto mais alucinante da minha vida: raramente íamos a menos de 120 numa picada cheia de buracos, com capim mais alto que os carros e exactamente da largura destes. Não tirei a mão da buzina desde que parti, com medo que uma criança se me atravessasse à frente.
Os Toyotas saltavam, dançavam, voavam por aquela picada fora e embora eu soubesse que as armas não se iam pôr a disparar sózinhas não conseguia impedir-me de pensar que uma granada ia cair, ou um soldado destravar a segurança e via constantemente à minha frente uma grande bola de fogo - e nós, no outro carro, alvo da fúria popular - o bem-amado Governador tinha, literalmente, explodido. Era coisa que ele parecia ir fazer a cada instante, o gajo era gordo, enorme, inchado ainda mais pelos 10% que comia da ajuda que nós levávamos para Kindu - coisa que escandalizou as chefias da Cruz Vermelha, coitadas, quando souberam.
Chegámos finalmente a Kalungo, ou coisa que o valha, não me lembro do nome. As outras agências, que não estavam em Kindu, tinham ido de avião. A excitação era enorme, os zairenses andavam cinzentos de medo e nós, os brancos, só por meias palavras percebemos que o Kabila estava perto, muito perto. A reunião foi nessa mesma tarde, e totalmente inútil. O objectivo era atribuir tarefas a cada uma das agências, mas ninguém ligava ao Governador, de qualquer forma. Ele queria igualmente explicar-nos que estávamos visivelmente a ajudar o Kabila e as consequências seriam graves. Nessa noite houve um jantar, no dia seguinte uma visita à aldeia e respectivo campo de aviação. Deixei lá um gajo nosso, Jean Longo, um homem extraordinário, corajoso e generoso como só os Zairenses sabem ser, quando querem e quando gostam das pessoas para quem o fazem.
Mas a excitação nas hostes zairenses estava a aumentar indisfarçavelmente e a seguir a um almoço apressado viémo-nos embora, ainda mais depressa do que fôramos. O batelão estava à nossa espera, com o capitão despedido a implorar clemência ao Governador e este a negá-la. Atravessámos para Kindu, fui para casa descansar e tentar repôr os meus orgãos internos nos respectivos lugares. Ao fim da tarde saí e fui para a beira do Rio, o grande rio. Era um daqueles crepúsculos africanos, mágicos, calmos, lindos, em que o dia parece parar e se interroga se deve deixar chegar a noite. O rio em Kindu tem quase um quilómetro de largura, e eu por ali me fiquei, a fumar um cigarro e a falar com o soldado que guardava, solitário, o cais. Estava tudo côr-de-laranja e a noite chegou, como de costume, com licença ou sem ela. Não devia estar ali, era perigoso passear na cidade mesmo de dia, quanto mais à noite, mas a calma e a beleza da tarde eram irresistíveis. O rio fluía, grande, largo, enorme, era sexta feira e parecia que o Kabila não o atravessaria antes do fim do século.
No sábado levantei-me muito cedo e fui para a rádio, como de costume. Estava à espera do resto do material rádio para instalar na agência e era preciso comunicar com Lubumbashi. Para grande espanto meu o Jean bateu-me à porta ainda não eram seis da manhã. Kabila tinha chegado a Kalungo na sexta feira logo depois de nós saírmos. Jean tinha-se safado num camião do exército que fugira logo após as habituais pilhagens. Estava a comunicar com Lubumbashi e a dar-lhes estas últimas novidades quando o tiroteio começou.
Jean foi esconder os jipes e eu fiquei na rádio. Era preciso decidir se o Dakota vinha para Kindu ou não. Às oito fui falar com o Governador, os tiros ainda estavam longe, do outro lado do rio, mas as tropas começavam a afluir. Ninguém gostava de nós, como de costume: é uma das ironias da ajuda humanitária, cada lado pensa que estamos a ajudar o outro - e inveja os nossos meios de comunicação, os nossos carros, o nosso dinheiro. Marie, a minha cozinheira, tremia. Mandei-a embora, e a todo o pessoal. O Governador queria que o Dakota viesse, mais para o levar a ele que para trazer o material, mas às nove e meia dei ordem ao avião para voltar para trás. Deu meia volta e cinco minutos depois um dos motores avariou e parou.
O tiroteio intensificava-se, as colunas de soldados que fugiam eram cada vez maiores, a pilhagem estava perto. Comecei a desmontar todo o material rádio que já tínhamos instalado. Tudo: a única coisa que não embalei mas desmontei e escondi foi o mastro da antena. Tudo o resto foi posto em caixas. A única pessoa que ficou comigo foi o Jean, que arriscava a vida se fosse apanhado ali. Mas ficou. E ajudou-me até eu lhe dar ordens terminantes para se ir embora. Era meio dia e era preciso tomar uma decisão quanto à evacuação: por estrada era impossível, mas eu hesitava em mandar vir um avião. Acabei por dizer que sim, o Gordo dizia-me que era possível. O King Air vinha para Kindu, ETA 4 da tarde. Havia lugar para mim e seis pessoas mais. Uma das minhas empregadas tinha seis filhos e um marido que era médico do Governador. Este queria vir mais o séquito todo. O tiroteio estava cada vez mais forte, mais próximo e o olhar dos soldados quando passavam à frente da delegação cada vez mais agressivo. Fui ao palácio falar com o gordo mas ele não desmordia: era ele que ia, mais o chefe de segurança dele, mais o chefe da polícia, mais não sei quem. Não havia lugar para a empregada, também não me lembro do nome dela.
Argumentei durante uma hora. O homem estava nervoso, tinha a Kalash ao lado e a certa altura pô-la no colo, não para me ameaçar mas porque estava inseguro. Ao fim de uma hora de conversa de chacha disse-lhe: "Monsieur le Gouverneur, agora eu não sou o representante de Cruz Vermelha e o senhor não é o Governador. Sou um homem a falar para outro homem. O que está em causa é saber se vamos salvar a vida de uma mulher e de alguns dos seus filhos ou se o vamos salvar a si, um homem, um soldado". A raiva transpareceu-lho no olhar e na resposta: "Fils de pute" foi a única coisa que me disse, baixinho. Depois de um longo silêncio continuou: "eu fico, ela vai, mas o meu chefe de segurança vai também e amnhã vêm-me buscar".
O mais agoniante foi assistir à senhora a escolher quais dos filhos levava, e a dizer adeus aos outros e ao marido.
Às três da tarde tinha tudo desmontado, empacotado e no jipe que tínhamos mantido. Fui buscar a senhora e segui para o palácio do Governador. O avião não havia maneira de chegar, já não tinha comunicação com eles. A espera foi interminável. Havia tiros por todos os lados. Eu queria ir para o aeroporto mas o gordo não me deixou, mandou-me esperar ali. A tensão era espessa, palpável, transmíssivel, podia cheirar-se e apalpar-se e tocar-se - e ouvir-se. Às quatro e meia consegui estabelecer contacto com o avião por VHF, estavam a quinze minutos e queriam saber se podiam aterrar. Perguntei ao gordo. Disse-me que sim e fez-me jurar que no dia seguinte o ia buscar a ele e ao resto do séquito - tinha sido uma das condições do deal, de qualquer forma. Que sim, claro; ele mandou-me esperar até termos o King Air à vista. Foi aí que arrancámos para o aeroporto. Devagar, muito devagar. As ruas estavam pejadas de soldados que olhavam para nós com uma fúria mal contida. A senhora fazia o que podia para acalmar os filhos e eu fazia o que podia para a acalmar a ela, que tinha deixado os dois mais velhos com o pai. O chefe da segurança acalmava-se com a pistola que levava na mão. Eu ia a guiar o carro, mas havia connosco um soldado para o levar de volta para o gordo. Não havia estradas, ele não o poderia utilizar para fugir.
O avião aterrou e nem desligou os motores: enfiámos as caixas todas lá para dentro, sob a vista dos soldados que enchiam o aeroporto como eu nunca o tinha visto. Fui o último a entrar, por uma questão de teatro ou de treino. Arrancámos e quando chegámos a Lubum bebi um grande, infinito whisky. Nunca mais voltei a Kindu; não sem como é que o Governador de lá saíu.
A nossa casa foi pilhada logo no dia seguinte, mas já lá não havia nada de valor. Das muitas críticas que recebi do pessoal do CICR que me substituiu em Lubum constava o facto de não ter o recibo do dinheiro que tinha deixado ao Jean.
Fiquei em Lubum mais um mês, até ser de novo evacuado, desta vez por estrada. Foi nesses dias que soube que um grupo de 19 padres e duas freiras que tinham passado dias e semanas a pedir-me para os ir buscar tinham sido mortos.
.. li tudo, até ao fim. reli algumas partes confesso ..
ResponderEliminardeixo-lhe um abraço Caro Luís.
Obrigado uma vez mais, Once. Uma releitura mais cuidada fez-me ver que há alguns erros de dactilografia a corrigir, reviver alguns dos dias mais dramáticos da minha vida e instilou uma dúvida: tenho quase a certeza absoluta que foi em Genève que soube do morte dos Frères Blancs; quanto ao resto, está tudo correcto.
ResponderEliminarnão reparei em erros Luís .. somente na coragem da sua partilha.
ResponderEliminarA maior parte dos erros de dactilografia e ortografia foi corrigida.
ResponderEliminarLuis, gostava de ter os textos ligados entre si (há pouco tempo postou mais uns detalhes sobre os padres e as freiras); gostava de reler estes relatos todos de seguida.
ResponderEliminarE, se calhar, seria a forma de o Luís fechar definitivamente este compartimento...
É uma boa ideia, Fugidia, e já pensei nela também. Não tardará.
ResponderEliminarImpressionante, Luís. Já tinha lido este texto mas ainda não tinha tido coragem de comentar. Há uma passagem no seu relato (talvez tenha sido essa a principal causa do meu silêncio) que me lembrou a cena mais arrepiante que já vi num filme: "A escolha de Sofia". Não consigo imaginar como se sobrevive à selecção de filhos, seja em que circunstâncias for.
ResponderEliminarFoi exactamente nisso que pensei, durante muito tempo. Depois de ler o livro, não sabia como se sobreviveria; depois de o viver, continuei a não saber.
ResponderEliminarDigeri melhor esse episódio do que o dos Frères Blancs, porque mais tarde vim a saber que o pai eos dois filhos que ficaram em Kindu sobreviveram e a família se reuniu, já não sei se em Lubumbashi se em Kinshasa.
Se bem o período em Lubum tenha sido atroz, com a senhora a bater-nos à porta todos os dias para saber notícias de Kindu, nós sem as termos e eu sem autorização para sequer falar com ela... um horror.
De Lubumbashi fomos evacuados por estarda para a Zâmbia, Nairobi e finalmente Genève.
Ainda hoje nutro um ódio profundo pelo CICR.
Percebo-o agora,Luís...
ResponderEliminarA impotência, a revolta, a mágoa, a raiva.
Carne da sua alma, se me permitir a correcção.
Abraço