7.11.08

O Nord Kivu, a ajuda humanitária e o desperdício

Hoje deixei um comentário a um post de Suzana Toscano no blog Quarta República. O tema apaixona-me - já deixei algumas histórias aqui no Don Vivo, de coisas que se passaram ou pelas quais passei naquelas bandas.

Poucas, porque ao mesmo tempo me repugna - no Burundi vivi aquele que foi, de longe, o ano mais intenso da minha vida, tanto do ponto de vista pessoal como profissional. No Zaire não andou muito longe: três evacuações em três meses, uma das quais debaixo de fogo, como nos filmes: o avião na pista com os motores a trabalhar, os caixotes de material que tinha recuperado lançado para dentro dele, uma mãe que teve de escolher quais dos filhos traria connosco e quais deixava lá ficar. Ao todo, o avião não chegou a estar parado na pista mais de dois ou três minutos.

Os miúdos que vi com cicatrizes à volta da cabeça: os machetes não tinham ido suficientemente fundo para os matar, e eles tinham aquelas cicatrizes, ainda recentes, algumas ainda com sangue, como coroas em redor do crânio, a toda a volta, como um turbante sem pano; ou o miúdo que passou ninguém sabe quantos dias - provavelmente cinco ou seis - debaixo de uma pilha de cadáveres numa igreja; as duas famílias de Hutus que dormiram durante mais de um mês no meu escritório, porque eram acusadas de terem participado activamente no genocídio e ninguém sabia o que fazer com eles - pô-los na rua era condená-los a uma morte certa, e atroz; os corpos que chegavam à praia pelo rio que vinha do Ruanda - num ano, os crocodilos desse rio passaram de segundos maiores a maiores do mundo. Cresceram em média um metro cada; o Governador da província que exigia 10% do valor da ajuda que dávamos aos refugiados - e eu fechava os olhos. O CICR não era uma agência de luta contra a corrupção e, por muito que isso custasse, do outro lado da balança estavam 30,000 pessoas que sem a nossa ajuda morreriam de fome (morreriam? Hoje não sei). Ou - creio que esta foi realmente a pior por que passei - os 19 padres e freiras que foram massacrados porque as minhas chefias em Kinshasa não quiseram que eu enviasse um avião para os ir buscar. Falava com eles todos os dias pela rádio, e todos os dias eles me pediam ajuda, e todos os dias eu gritava na rádio - literalmente, não é uma força de expressão - com Kinshasa e todos os dias eles me diziam que não. Um dia os padres não responderam à chamada rádio e eu pensei que tinham sido, finalmente, evacuados. Só em Genève soube do massacre, 19 padres e freiras que o CICR não quis ir buscar por razões que ainda hoje gostaria de perceber, e que ainda hoje, quando penso nisso, me dão náuseas e uma raiva sem fim.

Os colegas com quem convivi - sobretudo as de algumas ONG como a Médecins sans Frontières, da qual faziam parte as duas únicas pessoas que assistiam 120,000 (não é um erro: cento e vinte mil pessoas) em Lubutu: duas raparigas sem as quais a palavra coragem não teria, para mim, o significado que tem hoje. Os riscos de morte - riscos reais, não eram potenciais - que corríamos, os meus colegas, os funcionários das ONG, eu, tanto em Bujumbura como no terreno, as festas delirantes que dávamos, as homéricas bebedeiras nas quais a pressão se diluía, a semana de R&R que passei em Nairobi - não foi uma semana, porque havia trabalho a mais, e foi só uma vez, e de qualquer forma Nairobi é uma cidade horrível; ao fim de dois dias eu já estava farto até aos cabelos e pedi para voltar; os hipopótamos no Clube Náutico de Bujumbura - havia um marinheiro só para nos indicar quando podíamos sair ou quando podíamos entrar, porque eles mordiam os barcos.

Tudo isso para uma coisa que cada vez mais me aparece como uma inutilidade, como um desperdício de dinheiro, como um erro.

Às vezes apetece-me falar disso, dos efeitos perversos que a ajuda leva para aqueles países, a cultura de assistência que se está a criar - um dia, no Zaire um IDP (Internally Displaced Person) que estava em fuga, dizia, há cinco ou seis anos disse-me "hoje estamos aqui. Damos-vos (nessa altura eu trabalhava para o CICR) dois dias para nos trazerem comida e depois continuamos até chegar a Angola". (Nesse dia perdi um pouco a calma e respondi-lhe que "quem decidia quantos dias demoraríamos a levar-lhe comida éramos nós, e que se ele não estava contente com o serviço podia ir-se embora já".)

O medo - que não era bem medo, era tensão - permanente. À noite (enquanto não houve recolher obrigatório) em Bujumbura não se podia atravessar uma rua a pé. Atravessar uma rua, não é percorrê-la: é atravessar uma avenida larga como a 5 de Outubro, a pé.

Não serviu de nada. Escrevam no Google "crise humanitaire goma" e "crise humanitaire goma 1994" e vejam se distinguem as notícias. Em 1994 houve milhares de mortos, não me lembro se devido à erupção do vulcão local (Nyiragongo, recorda-me o Google) se devido a uma invasão dos campos de refugiados - sei que estive quase a ser colocado lá, e só não fui porque nessa altura ainda estava sozinho em Buja (na logística) e tiveram que mandar vir outra pessoa de Genève, ou Nairobi, não me lembro. (No Norte du Burundi assistíamos entre 300 mil e 320 mil pessoas, divididas em 7 campos de refugiados. O maior tinha 36,000 refugiados. Havia também meia dízia de sítios com IDP).

Estamos a gastar dinheiro para nada, a pôr em risco a vida de inúmeros jovens cheios de boa vontade e boas intenções (há cada vez mais mortos no humanitário, porque cada vez mais é visto - não sem razão - como um instrumento político) para nada, estamos a curar uma infecção com talas de gesso - para nada, claro. E estamos sobretudo a desperdiçar inteligência, conhecimento - eu nunca vi, nunca, tantos cérebros tão competentes e tão eficazes como no UNHCR e CICR. Tomara as empresas privadas terem metade daquele brainpower à disposição - digo isto com muita amargura, mas sem qualquer ironia - e todo ele orientado para o mesmo fim, completamente inútil.

Um dia falarei disso mais sobriamente. Ou esquecer-me-ei de vez, o que preferiria de longe.

8 comentários:

  1. Ainda bem que não entrou em grandes detalhes, Luís, porque eu prefiro não saber… sabendo. Depreendo que a sua posição relativamente a essa ajuda humanitária resulte do facto de ela não se orientar para o real desenvolvimento africano; ser daquele tipo de caridade pontual a que o pobre se encosta para não ter, ele próprio, de procurar soluções estruturais, de continuidade. Mas há, infelizmente, o grave problema das lideranças políticas, um empecilho que não vai ser removido numa década, nem, se calhar, num século. Às vezes, receio que as – ou certas - populações africanas se encontrem encurraladas num beco, de que a única saída, descendo da visão global ao caso a caso, seja mesmo a mão que se lhes estende com o saco de farinha.

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  2. Sim, Luísa, é um dilema grave e nada fácil de resolver.

    O problema é que visivelmente a abordagem que tem sido feita até aqui não funciona.

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  3. Nao sei qual será a solução para África, mas também penso que terá de ser estrutural e inplementada pelos próprios africanos. Só assim funcionará e poderá durar, porque não lhes parecerá imposta e interesseira. Mas também acredito que estejam a anos-luz de chegar a essa capacidade de criar a sua própria solução, e até lá é desesperante vê-los sofrer assim. Como diz a Luísa, um saco de farinha é quase só o que podemos fazer para minorar esse sofrimento. E é terrível constatar isso, num continente com os recursos de África...

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  4. implementada, claro

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  5. Uma velha blague do mundo humanitário é esta definição: ajuda humanitária é o dinheiro que os meninos pobres dos países ricos mandam para os meninos ricos dos países pobres.

    As causas dos pedidos de apoio psicológico entre os trabalhadores do humanitário não são o risco que correm, a tensão permanente, a violência do que se vive e do que se vê. A isso uma pessoa habitua-se. Os trabalhadores humanitários recorrem ao apoio psicológico que todas as organizações têm porque - maioritariamente, claro - não suportam os conflitos que têm que ter com as autoridades de um determinado país para fazer chegar a ajuda aos beneficiários - muitas vezes, mas nem sempre, nacionais desse mesmo país (definições: é-se refugiado desde que se atravessa uma fronteira; IDP quando se fica no país de origem.

    Quem põe mais obstáculos às ajuda humanitária no Congo é o Governo Congolês - ou as autoridades locais, neste (e noutros) casos específicos.

    As razões são várias. Entre outras:
    a) Beneficiar financeiramente da ajuda - corrupção, em português lhano;
    b) Impedir o afluxo ou a instalação permanente de refugiaodos ou IDP;
    c) Extrair contrapartidas políticas da actuação das ONG;
    d) Extrair contrapartidas políticas dos países de onde os beneficiários são originários.

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  6. Anónimo08:40

    Essa questão da África me toca por muitas razões.Uma delas de ordem pessoal (meu namorado anda numa missão por lá,fato que ainda não "digeri" bem) e as questões que envolvem mais amplamente a "ajuda humanitária". Hoje não consigo ter distanciamento suficiente para análises. Me resta a dor a a preocupação (já fui chamada de egísta por isso,será?).

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  7. Cara Ana Paula Motta,

    Não sei se as suas motivações podem ser apelidadas de "egoísmo"; mas sei que se forem, é o egoísmo mais justificado, mais legítimo, mais correcto, natural, compreensível, normal do mundo.

    Aberrante seria não se interessar por África, e pelas questões do humanitário, tendo lá o seu namorado.

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  8. É hábito dizer-se para não nos determos na árvore a fim de podermos ter uma perspectiva global da floresta.

    No caso da ajuda humanitária, julgo que se passa o inverso:
    temos sempre que ter presente o valor das árvores que sobrevivem.

    É nelas que reside o poder da mudança, é nelas que está a semente para uma floresta diferente.


    Pense nisso. Quando a dor de cabeça ameaçar ou outra qualquer dor, der sinal em si: nas árvores que sobreviveram.


    Um beijo

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.