Já dos meus pais não há muito a dizer (também não posso: cortam-me a mesada por tudo e por nada. Digo qualquer coisa? Lá se vai a massa; fico calado? Já foi. O ideal é um meio termo entre o silêncio e as palavras, qualquer coisa como um silêncio de entendidos, if you see what I mean).
O meu pai era condutor de eléctricos na Carris (ele vai aos arames, quando lhe chamam "condutor de eléctricos": "Wattman", corrige imediatamente, com um grito feroz). Foi-o toda a sua vida activa (agora está na reforma). Era um senhor muito competente no seu trabalho - não era só ele a dizê-lo: a minha mãe também o diz; e mesmo muitos colegas, na festa de despedida (trabalhou na empresa 47 anos, dos 18 aos 65. E mesmo assim não queria vir-se embora. Ainda tentou ficar como consultor, mas não quiseram). Era muito conservador e não gostava de mudanças: várias vezes quiseram promovê-lo a condutor de autocarros - ou mesmo a condutor daqueles eléctricos modernos, horríveis - e não quis. Toda a sua vida conduziu os mesmos veículos - e se pudesse e a empresa lhe tivesse dado ouvidos, sempre o mesmo. - Não deram, claro. É um dos grandes problemas do nosso país: toda a gente pensa que sabe tudo e ninguém dá ouvidos a quem realmente sabe. Cultura livresca, é o que é.
O meu pai tinha uma admiração enorme (misturada com um bocadinho de medo, creio) pelo meu avô. A tal ponto que decidiu, muito jovem ainda, que só se casaria com uma senhora cujo nome fosse Gabriela. Por isso casou tão tarde: na altura não havia muitas Gabrielas - aliás ele confidenciou-me um dia que esteve quase a ir ao Brasil à procura de uma Gabriela. Felizmente não foi preciso. Encontrou a minha mãe numa festarola dessas dos bairros populares e nunca mais a largou. Era terrível, o meu pai. Tinha um jeito para mulheres que só visto. Ao fim de dois anos de namoro a minha mãe caiu-lhe nos braços e aceitou casar com ele. (Ela defende-se: diz que tinha bebido mais do que o habitual. Mas isso é daquelas coisas que todas as senhoras dizem, não é?).
O meu pai tinha - tem. Graças a Deus ainda é vivo - um piadão. Fazia humor com qualquer coisa. Um passageiro mais estranho, uma linha que não fosse trocada a tempo, qualquer coisa o fazia rir. Ainda é assim, mas os motivos são menos, claro. Afinal está na reforma, não é?
O pai atribui imensa importância à sua ascendência: ser neto do filho bastardo de um conde atesta, quanto a ele, a excelência da nossa linhagem. Tem razão, claro; os genes não sabem o que é o casamento, a aliança, a fidelidade e essas coisas todas. Aos genes só lhes interessa reproduzirem-se - e como toda a gente sabe, só os melhores o conseguem.
(Interrompo aqui o meu relato. Ali ao lado há uma loja que vende bebidas a um preço incomparável - enfim, o preço é comparável. Mas sai a ganhar da comparação. É isso que quero dizer com "incomparável". E têm Baileys, um licor que misturado com uma pedra de gelo e duas gotas de whisky Jameson vale muito mais do que o preço que por ele eles me pedem. Já volto, se não se importam.
PS - este foi um truque que aprendi na Irlanda. Um dia contarei a história. É muito gira.)
O meu pai era condutor de eléctricos na Carris (ele vai aos arames, quando lhe chamam "condutor de eléctricos": "Wattman", corrige imediatamente, com um grito feroz). Foi-o toda a sua vida activa (agora está na reforma). Era um senhor muito competente no seu trabalho - não era só ele a dizê-lo: a minha mãe também o diz; e mesmo muitos colegas, na festa de despedida (trabalhou na empresa 47 anos, dos 18 aos 65. E mesmo assim não queria vir-se embora. Ainda tentou ficar como consultor, mas não quiseram). Era muito conservador e não gostava de mudanças: várias vezes quiseram promovê-lo a condutor de autocarros - ou mesmo a condutor daqueles eléctricos modernos, horríveis - e não quis. Toda a sua vida conduziu os mesmos veículos - e se pudesse e a empresa lhe tivesse dado ouvidos, sempre o mesmo. - Não deram, claro. É um dos grandes problemas do nosso país: toda a gente pensa que sabe tudo e ninguém dá ouvidos a quem realmente sabe. Cultura livresca, é o que é.
O meu pai tinha uma admiração enorme (misturada com um bocadinho de medo, creio) pelo meu avô. A tal ponto que decidiu, muito jovem ainda, que só se casaria com uma senhora cujo nome fosse Gabriela. Por isso casou tão tarde: na altura não havia muitas Gabrielas - aliás ele confidenciou-me um dia que esteve quase a ir ao Brasil à procura de uma Gabriela. Felizmente não foi preciso. Encontrou a minha mãe numa festarola dessas dos bairros populares e nunca mais a largou. Era terrível, o meu pai. Tinha um jeito para mulheres que só visto. Ao fim de dois anos de namoro a minha mãe caiu-lhe nos braços e aceitou casar com ele. (Ela defende-se: diz que tinha bebido mais do que o habitual. Mas isso é daquelas coisas que todas as senhoras dizem, não é?).
O meu pai tinha - tem. Graças a Deus ainda é vivo - um piadão. Fazia humor com qualquer coisa. Um passageiro mais estranho, uma linha que não fosse trocada a tempo, qualquer coisa o fazia rir. Ainda é assim, mas os motivos são menos, claro. Afinal está na reforma, não é?
O pai atribui imensa importância à sua ascendência: ser neto do filho bastardo de um conde atesta, quanto a ele, a excelência da nossa linhagem. Tem razão, claro; os genes não sabem o que é o casamento, a aliança, a fidelidade e essas coisas todas. Aos genes só lhes interessa reproduzirem-se - e como toda a gente sabe, só os melhores o conseguem.
(Interrompo aqui o meu relato. Ali ao lado há uma loja que vende bebidas a um preço incomparável - enfim, o preço é comparável. Mas sai a ganhar da comparação. É isso que quero dizer com "incomparável". E têm Baileys, um licor que misturado com uma pedra de gelo e duas gotas de whisky Jameson vale muito mais do que o preço que por ele eles me pedem. Já volto, se não se importam.
PS - este foi um truque que aprendi na Irlanda. Um dia contarei a história. É muito gira.)
Os condutores de eléctricos da Carris sempre me fascinaram, a guiarem o carro com aquela enorme roda metálica...Nunca tive a coragem de perguntar para que servia....E havia o famoso letreiro, Quem conversa com o condutor, torna~se moralmente responsável em caso de acidente!
ResponderEliminarbeijinho, Maria
São sempre interessantes as histórias de família, mesmo as mais banais, se bem contadas. Esta família já me «agarrou» e aguardo com expectativa novos desenvolvimentos.
ResponderEliminarP.S.: Presumo que o truque é esse mesmo, de nos deixar na expectativa, não? ;-)