Não sei se já aqui contei a história: há anos tinha eu uma empresa de aluguer de embarcações de vela. Decidi, por piada e para dar um ar "de marinheiro", começar a seguir à linha as velhas superstições do mar (pelo menos do mar francês): não dizer nunca, em circunstância alguma, a palavra "coelho" a bordo; não aceitar plantas nem flores; não sair [de um porto] a uma sexta-feira; pôr uma moeda debaixo do mastro quando se arvora a embarcação.
Eu levava aquilo na brincadeira, e explicava aos clientes as origens de cada uma das superstições: "coelho" porque os roedores tinham o mau hábito de roer os cascos dos navios quando eles eram em madeira e eram terminantemente proibidos a bordo; as flores, porque consumiam água doce, o bem mais precioso no mar; sair à sexta-feira porque antigamente os marinheiros eram pagos à sexta-feira, e encontrar um a bordo em estado de servir era impossível.
Há muitas expressões também, claro: "arrondir son couteau" = encontrou um embarque (os capitães partiam as pontas das facas dos marinheiros que embarcavam, para evitar ferimentos); "casser la pipe" = morrer: partia-se o cachimbo de um marinheiro que morria, antes de se o deitar ao mar. E assim por diante.
Um dia apercebi-me que estava a levar a brincadeira longe de mais. Foi em La Rochelle, na Primavera, na marina de Minimes. Nao sei se alguém faz ideia do que são os Minimes na Primavera. Havia na altura seis travel-lifts e não paravam um minuto durante o dia. Eram às centenas os barcos que subiam, desciam, precisavam de ser tirados de um sítio e postos noutro. Eu tinha acabado de arvorar o "Don Vivo", a coisa mais linda na qual me foi dado navegar; e apercebi-me de que tinha esquecido a moeda debaixo do mastro. Fui a correr atrás do senhor que me tinha posto o mastro no sítio, salvo seja, e perguntei-lhe se ele mo podia levantar outra vez; e, pensando que assim justificava o pedido, acrescentei "esqueci-me de pôr a moeda".
O homem veio levantar o mastro. Mas se algum dia eu tiver a sorte de fazer um filme o olhar que ele me deitou será o modelo para um olhar de ódio. Ódio puro, simples, profundo, intuitivo. Se eu conseguir fazer um actor reproduzir aquele olhar terei conseguido o filme, qualquer que ele seja.
Nesse dia decidi que tinha ido longe de mais; e deixei de contar as histórias das superstições marítimas.
PS - há uma que mantenho. Ainda hoje me custa - se bem aceite e compreenda, claro; e mais: agradeça - que me desejem "boa sorte" ou "boa viagem". Não se deseja boa viagem nem boa sorte a um marinheiro. Diz-se (em francês no texto) "Merda"; e "break a leg" em inglês. (No teatro também: as pessoas que os teatros contratavam para manejar os cenários eram marinheiros, habituados a lidar com cabos).
PPS - "porquê?", oiço os sussurros na plateia. Porque no mar nada corre como queremos, e se alguém quiser que eu parta uma perna de certeza tudo correrá pelo melhor.
Eu levava aquilo na brincadeira, e explicava aos clientes as origens de cada uma das superstições: "coelho" porque os roedores tinham o mau hábito de roer os cascos dos navios quando eles eram em madeira e eram terminantemente proibidos a bordo; as flores, porque consumiam água doce, o bem mais precioso no mar; sair à sexta-feira porque antigamente os marinheiros eram pagos à sexta-feira, e encontrar um a bordo em estado de servir era impossível.
Há muitas expressões também, claro: "arrondir son couteau" = encontrou um embarque (os capitães partiam as pontas das facas dos marinheiros que embarcavam, para evitar ferimentos); "casser la pipe" = morrer: partia-se o cachimbo de um marinheiro que morria, antes de se o deitar ao mar. E assim por diante.
Um dia apercebi-me que estava a levar a brincadeira longe de mais. Foi em La Rochelle, na Primavera, na marina de Minimes. Nao sei se alguém faz ideia do que são os Minimes na Primavera. Havia na altura seis travel-lifts e não paravam um minuto durante o dia. Eram às centenas os barcos que subiam, desciam, precisavam de ser tirados de um sítio e postos noutro. Eu tinha acabado de arvorar o "Don Vivo", a coisa mais linda na qual me foi dado navegar; e apercebi-me de que tinha esquecido a moeda debaixo do mastro. Fui a correr atrás do senhor que me tinha posto o mastro no sítio, salvo seja, e perguntei-lhe se ele mo podia levantar outra vez; e, pensando que assim justificava o pedido, acrescentei "esqueci-me de pôr a moeda".
O homem veio levantar o mastro. Mas se algum dia eu tiver a sorte de fazer um filme o olhar que ele me deitou será o modelo para um olhar de ódio. Ódio puro, simples, profundo, intuitivo. Se eu conseguir fazer um actor reproduzir aquele olhar terei conseguido o filme, qualquer que ele seja.
Nesse dia decidi que tinha ido longe de mais; e deixei de contar as histórias das superstições marítimas.
PS - há uma que mantenho. Ainda hoje me custa - se bem aceite e compreenda, claro; e mais: agradeça - que me desejem "boa sorte" ou "boa viagem". Não se deseja boa viagem nem boa sorte a um marinheiro. Diz-se (em francês no texto) "Merda"; e "break a leg" em inglês. (No teatro também: as pessoas que os teatros contratavam para manejar os cenários eram marinheiros, habituados a lidar com cabos).
PPS - "porquê?", oiço os sussurros na plateia. Porque no mar nada corre como queremos, e se alguém quiser que eu parta uma perna de certeza tudo correrá pelo melhor.
Muito giro, Luís! E o olhar de ódio do homem não foi porque o Luís fosse supersticioso, mas porque tinha relaxado a superstição. Continue, portanto a sê-lo, enquanto andar no mar. E eu não me esquecerei de lhe desejar, nessas circunstâncias, o pior possível. :-)
ResponderEliminarao ler isto, lembrei-me da Île-d'Aix, onde comi amoras que sabiam a mar
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