Os dias vão-se sucedendo; não são iguais. Já estamos a recolher o cabo (enfim, já está quase recolhido, o cruzeiro acaba daqui a 3 dias...). Aprendi que a melhor maneira de tratar espetadelas de ouriço do mar é com água quente, logo a seguir. Ou qualquer coisa quente - até areia. Como não sabia, fui lancetado e estou a antibióticos. Aprendi também que na baía de Wallilabou (pronuncia-se Uàlabu, esta malta precisa de um acordo ortográfico) foram filmadas partes dos filmes Piratas das Caraíbas. O senhor do restaurante pediu à produção para deixar parte dos cenários, por razões mais ou menos evidentes, e a produção aceitou.
Apesar disso o local é bonito: uma baía relativamente pouco cavada - duzentos metros, talvez - na qual se amarra a proa a uma bóia e a popa a uma árvore em terra (há quem preferisse fundear, mas os meus de resto abençoados passageiros desde que ouvem a palavra "bóia" não querem outra coisa). Somos para aí dez barcos, o que dá uma sensação de cheio mas não de esmagamento. A um quilómetro do fundeadouro há uma pequena queda de água que proporciona umas massagens excelentes a quem se puser debaixo dela. Foi o que fiz: parece que se está a ser massajado por uma trupe de mamutes em delírio, mas a verdade é que é óptimo.
Voltámos a Bequia, claro, para tirar os pontos do Bernie, para ver os meus dedos e para reparar o lazy bag. Foi a primeira vez que um médico me pergunta se quero ser anestesiado para me fazer uns golpes; disse que não, e acho que fiz bem: a dor é perfeitamente suportável. Só tenho pena que ele não tenha feito a mesma coisa no outro dedo, que agora me dói muito mais do que o que foi lancetado. E descobri um restaurante francês, l'Auberge des Grenadines, que recomendo vivamente a quem por acaso por aqui passar. Nas ilhas inglesas come-se mal, excepto claro se o jantar for de lagosta (e preparada simplesmente). Mas a bordo do JINGLE a palavra "lagosta" está proscrita, consequência do excesso de demasiadas lagostas. De maneira um restaurante francês é sempre bem vindo.
Felizmente tenho o melhor emprego do mundo, nunca é de mais repeti-lo. Um dia de vela como o de hoje trata as maleitas todas. Saímos de Bequia às 11 da manhã, como previsto. Fizemos uma bolina cerrada, amurados a estibordo, como sempre, para chegar a Kingstown - o Peter queria ver a cidade onde esteve em 1963. O objectivo era dar a volta à baía e seguir para Wallilabou. Assim foi. Eu estava sempre à espera de ter que arrear pano e pôr o motor, mas a seguir a Kingstown o vento rondou a noroeste (!) e vim amurado a bombordo - eu repito, para terem a certeza que não se trata de um erro: amurado a bombordo - com sete ou oito nós de vento real a 100 metros da costa. O JINGLE mostrou-se à altura e lá foi fazendo três, quatro nós; com mais um da corrente de popa chegámos num instante.
Há uma beleza qualquer, que eu ainda não percebi qual é, em passar um cabo sem ter que virar de bordo, só porque se aproveitam todas as rajadas e todas as oportunidades de orçar. O mar estava chão; St. Vincent, já por aqui o disse, é na minha opinião a mais bonita de todas as ilhas, vistas do mar. A 100 metros ainda é mais bonita (e a sotavento, para a adrenalina). Parece uma Suíça tropical. Com mar chão, sem um ruído a bordo (excepto o das senhoras a conversarem, claro. Não se calaram desde que saímos do Marin, excepto para dormir. Não sei onde vão elas buscar tanta conversa, seja Deus louvado) parecia-me que estava a deslizar num bocadinho de paraíso, num tapete mágico, num pedaço de planeta - a expressão é de Conrad - que a gravidade tivesse atraído para aqui. Está calor e sol, finalmente (o aquecimento global fez uma pausa) e eu senti-me nas palmas do mar, como se ele tivesse decidido juntar as mãos e levar-me nelas, a mim só, que fui o único a bordo que se apercebeu da magia daquela navegação.
Amanhã largamos muito cedo - é a maior perna do trajecto, quase cinquenta milhas. Vamos parar em Marigot Bay (St. Lucia), se nada nem ninguém decidir outra coisa. Como dizem os ingleses, é preciso ter um plano, se quisermos não o respeitar. Nesta viagem não houve planos; por isso têm sido respeitados escrupulosamente.
Apesar disso o local é bonito: uma baía relativamente pouco cavada - duzentos metros, talvez - na qual se amarra a proa a uma bóia e a popa a uma árvore em terra (há quem preferisse fundear, mas os meus de resto abençoados passageiros desde que ouvem a palavra "bóia" não querem outra coisa). Somos para aí dez barcos, o que dá uma sensação de cheio mas não de esmagamento. A um quilómetro do fundeadouro há uma pequena queda de água que proporciona umas massagens excelentes a quem se puser debaixo dela. Foi o que fiz: parece que se está a ser massajado por uma trupe de mamutes em delírio, mas a verdade é que é óptimo.
Voltámos a Bequia, claro, para tirar os pontos do Bernie, para ver os meus dedos e para reparar o lazy bag. Foi a primeira vez que um médico me pergunta se quero ser anestesiado para me fazer uns golpes; disse que não, e acho que fiz bem: a dor é perfeitamente suportável. Só tenho pena que ele não tenha feito a mesma coisa no outro dedo, que agora me dói muito mais do que o que foi lancetado. E descobri um restaurante francês, l'Auberge des Grenadines, que recomendo vivamente a quem por acaso por aqui passar. Nas ilhas inglesas come-se mal, excepto claro se o jantar for de lagosta (e preparada simplesmente). Mas a bordo do JINGLE a palavra "lagosta" está proscrita, consequência do excesso de demasiadas lagostas. De maneira um restaurante francês é sempre bem vindo.
Pouco a pouco Bequia descobre-se para mim. Em breve estará nua – é uma ilha pequena, na qual os segredos vêm e vão-se logo; será preciso cobri-la com o que for conhecendo.
Como o Yacht Club, o primeiro sítio “branco” onde vou. O mais bonito, o mais profissional e bem localizado (o que para um clube náutico não é de estranhar); e o mais desinteressante. Não é uma espécie qualquer de racismo ao contrário, ou desprezo pela beleza das pequenas, que em alguns casos é surpreendente. É só que é desinteressante.
Sempre tratei bem o meu corpo: dei-lhe a beber quantidades invejáveis de vinho e whisky (e agora rum e cerveja); alimentei-o com muita carne e peixe, pouquíssimos legumes, vegetais e frutas, bastante azeite, boa manteiga salgada da Bretanha e outras gorduras. Nunca me enchi de remédios, para desespero de alguns médicos e alegria de outros. De todas as substâncias destinadas a tornar suportável a passagem pela crosta terrestre (não incluo nestas as drogas duras, porque me parecem mais venenosas do que benfazejas) a única que não lhe dei em grandes quantidades durante muito tempo foi o tabaco - deixei de fumar cigarros (involuntariamente) há muito tempo, e mesmo os havanos se fizeram esparsos. Tão pouco se pode queixar das carícias que recebeu, dos corpos que lhe dei a conhecer. Mas o maldito não mostra reconhecimento nenhum. É certo que na aparência continua a funcionar bem: as feridas cicatrizam depressa, mexo-me correctamente (desde que não se interprete "mexer" como "dançar", claro) e a azia responde bem ao Maalox, ou a uma redução dos picantes. Mas por dentro parece-me que está todo lixado, com dorzinhas aqui e ali, dorzinhas chatas que vão e vêm e desaparecem mal aparecem mas irritam.Felizmente tenho o melhor emprego do mundo, nunca é de mais repeti-lo. Um dia de vela como o de hoje trata as maleitas todas. Saímos de Bequia às 11 da manhã, como previsto. Fizemos uma bolina cerrada, amurados a estibordo, como sempre, para chegar a Kingstown - o Peter queria ver a cidade onde esteve em 1963. O objectivo era dar a volta à baía e seguir para Wallilabou. Assim foi. Eu estava sempre à espera de ter que arrear pano e pôr o motor, mas a seguir a Kingstown o vento rondou a noroeste (!) e vim amurado a bombordo - eu repito, para terem a certeza que não se trata de um erro: amurado a bombordo - com sete ou oito nós de vento real a 100 metros da costa. O JINGLE mostrou-se à altura e lá foi fazendo três, quatro nós; com mais um da corrente de popa chegámos num instante.
Há uma beleza qualquer, que eu ainda não percebi qual é, em passar um cabo sem ter que virar de bordo, só porque se aproveitam todas as rajadas e todas as oportunidades de orçar. O mar estava chão; St. Vincent, já por aqui o disse, é na minha opinião a mais bonita de todas as ilhas, vistas do mar. A 100 metros ainda é mais bonita (e a sotavento, para a adrenalina). Parece uma Suíça tropical. Com mar chão, sem um ruído a bordo (excepto o das senhoras a conversarem, claro. Não se calaram desde que saímos do Marin, excepto para dormir. Não sei onde vão elas buscar tanta conversa, seja Deus louvado) parecia-me que estava a deslizar num bocadinho de paraíso, num tapete mágico, num pedaço de planeta - a expressão é de Conrad - que a gravidade tivesse atraído para aqui. Está calor e sol, finalmente (o aquecimento global fez uma pausa) e eu senti-me nas palmas do mar, como se ele tivesse decidido juntar as mãos e levar-me nelas, a mim só, que fui o único a bordo que se apercebeu da magia daquela navegação.
Amanhã largamos muito cedo - é a maior perna do trajecto, quase cinquenta milhas. Vamos parar em Marigot Bay (St. Lucia), se nada nem ninguém decidir outra coisa. Como dizem os ingleses, é preciso ter um plano, se quisermos não o respeitar. Nesta viagem não houve planos; por isso têm sido respeitados escrupulosamente.
É terrível quando percebemos que a nossa inteligência pode, querendo, dominar tudo menos o corpo que a sustenta, Luís. Já não sei se considere o corpo o traidor, se a inteligência o castigo. Valham-nos esses mares, esses paraísos tropicais e esses dias para viver um de cada vez, como manda quem sabe. ;-
ResponderEliminarO curioso, Luísa, é que tenho a impressão que a cabeça, essa, funciona melhor (o que não sei se me alegra realmente, mas isso é outra história).
ResponderEliminarEnfim, talvez seja o contexto que dá essa impressão.
Mas funciona mesmo melhor, Luís. A experiência ensina muito, salvo como realizar milagres. Mas daqui a uns milénios, aposto...
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