Domingo é um dia triste aqui no cantinho de Parnaíba que habito. Está tudo fechado, salvo a geladaria da esquina; mas o tempo está de chuva e nem ela atrai muita gente.
B. aguentou valentemente a bátega de ontem. Agora é preciso cobri-lo de plástico, para não entrar água e deixar a madeira secar.
E da pousada pode-se dizer o mesmo. Quando cheguei, sapatos encharcados de terem vindo a chapinhar em tudo quanto era poça de água (na verdade era só uma, ao longo dos cem metros de caminho) e toquei à campainha apanhei um choque.
Hoje acordei sem luz, devido a um curto circuito. Vi os electricistas reparar a instalação e perguntei-me como é que não houve um incêndio, com os fios descarnados a passar ao longo das traves da madeira que sustentam o telhado. Aquilo devia estar completamente encharcado, felizmente.
Raimundo convidou-me para almoçar, e eu aceitei, naturalmente. Fui com um misto de curiosidade e temor - não sou muito bom a inventar conversa, e pensava que ia comer um horror. Ambos infundados, os receios, como quase sempre. O peixe (tilápia) não era grande coisa - nada a ver por exemplo com as tilápias do lago Tanganika com as quais tantas vezes me deliciei. Eram de piscicultura e tinham um ligeiro sabor a lama. Mas era ligeiro, e o molho estava delicioso.
Raimundo vive numa casa grande, mal cuidada, mas limpa e arrumada (enfim, não há grande coisa para desarrumar, verdade seja dita). A sala de estar consiste numa televisão e meia dúzia de cadeiras dessas de plástico das esplanadas à volta. A sala de jantar uma mesa e cadeiras de plástico branco. Em cada quarto entrevia-se uma ou duas redes e uma cama. A casa é "invadida", responde-me quando lhe pergunto se é dele ou alugada. "Invadi-a há dez anos; arranjei-a toda". segue-se uma breve justificação do squatting. Não tenho, nunca tive grande simpatia por squatters. Os que conheci até hoje eram meninos mimados que disfarçavam com roupagem ideológica a sua vontade de viver num sítio central e para o qual não precisassem de trabalhar muito; é a primeira vez que um squatter me desperta um ligeira ponta de simpatia.
Francisca, a mulher de Raimundo, é mulher bonita. sorridente, simpática. Veio juntar-se a nós (comemos os dois sozinhos) e ficou ali a ouvir a conversa, e a banar a cabeça, de vez em quando.
Raimundo tem quarenta e três anos e terminou o ensino básico agora, há pouco tempo. Amanhã começam as aulas do ensino secundário, das sete às dez da noite. Como ele se levanta todos os dias às três da manhã para fazer o cuscus que depois vai vender pelas ruas digo-lhe que é uma decisão corajosa. Responde-me que o sonho dele é fazer um curso superior, em agronomia, e que há-de lá chegar "nem que seja aos cinquenta e cinco anos".
Raimundo é jardineiro, mas aquilo de que gosta mesmo é reflorestamento e recuperação de áreas degradadas. Fala-me longamente no que é preciso para escolher as árvores adequadas a um determinado meio; diz-me que na Amazónia já estão a fazer "desflorestamento sustentável", conceito que não percebi muito bem ("cortam árvores num lado e plantam-nas noutro"). Tentou arranjar dinheiro para fazer uma empresa, mas obviamente não conseguiu. Falei-lhe no microcrédito, mas ele diz que os montantes de que necessita são muito elevados.
O almoço passou rápido. Foi um verdadeiro prazer. Agora percebo melhor de onde lhe vem o gosto pelas palavras caras, por mostrar que sabe que ao princípio me intrigava e irritava ("óleo e água é uma mistura heterogénea", "água - H2O", e por aí fora).
A verdade é que me ensinou uma forma de preparar cabos para uma manobra que eu não conhecia, ou que pelo menos tinha completamente esquecida. E conseguiu desatar os nós dos cabos que usámos para puxar B., quando eu lhe disse para os cortar, pois não havia nada a fazer.
A parte mais difícil e chata do trabalho está concluída. Agora começa a mais importante, até ao reboque.
B. aguentou valentemente a bátega de ontem. Agora é preciso cobri-lo de plástico, para não entrar água e deixar a madeira secar.
E da pousada pode-se dizer o mesmo. Quando cheguei, sapatos encharcados de terem vindo a chapinhar em tudo quanto era poça de água (na verdade era só uma, ao longo dos cem metros de caminho) e toquei à campainha apanhei um choque.
Hoje acordei sem luz, devido a um curto circuito. Vi os electricistas reparar a instalação e perguntei-me como é que não houve um incêndio, com os fios descarnados a passar ao longo das traves da madeira que sustentam o telhado. Aquilo devia estar completamente encharcado, felizmente.
Raimundo convidou-me para almoçar, e eu aceitei, naturalmente. Fui com um misto de curiosidade e temor - não sou muito bom a inventar conversa, e pensava que ia comer um horror. Ambos infundados, os receios, como quase sempre. O peixe (tilápia) não era grande coisa - nada a ver por exemplo com as tilápias do lago Tanganika com as quais tantas vezes me deliciei. Eram de piscicultura e tinham um ligeiro sabor a lama. Mas era ligeiro, e o molho estava delicioso.
Raimundo vive numa casa grande, mal cuidada, mas limpa e arrumada (enfim, não há grande coisa para desarrumar, verdade seja dita). A sala de estar consiste numa televisão e meia dúzia de cadeiras dessas de plástico das esplanadas à volta. A sala de jantar uma mesa e cadeiras de plástico branco. Em cada quarto entrevia-se uma ou duas redes e uma cama. A casa é "invadida", responde-me quando lhe pergunto se é dele ou alugada. "Invadi-a há dez anos; arranjei-a toda". segue-se uma breve justificação do squatting. Não tenho, nunca tive grande simpatia por squatters. Os que conheci até hoje eram meninos mimados que disfarçavam com roupagem ideológica a sua vontade de viver num sítio central e para o qual não precisassem de trabalhar muito; é a primeira vez que um squatter me desperta um ligeira ponta de simpatia.
Francisca, a mulher de Raimundo, é mulher bonita. sorridente, simpática. Veio juntar-se a nós (comemos os dois sozinhos) e ficou ali a ouvir a conversa, e a banar a cabeça, de vez em quando.
Raimundo tem quarenta e três anos e terminou o ensino básico agora, há pouco tempo. Amanhã começam as aulas do ensino secundário, das sete às dez da noite. Como ele se levanta todos os dias às três da manhã para fazer o cuscus que depois vai vender pelas ruas digo-lhe que é uma decisão corajosa. Responde-me que o sonho dele é fazer um curso superior, em agronomia, e que há-de lá chegar "nem que seja aos cinquenta e cinco anos".
Raimundo é jardineiro, mas aquilo de que gosta mesmo é reflorestamento e recuperação de áreas degradadas. Fala-me longamente no que é preciso para escolher as árvores adequadas a um determinado meio; diz-me que na Amazónia já estão a fazer "desflorestamento sustentável", conceito que não percebi muito bem ("cortam árvores num lado e plantam-nas noutro"). Tentou arranjar dinheiro para fazer uma empresa, mas obviamente não conseguiu. Falei-lhe no microcrédito, mas ele diz que os montantes de que necessita são muito elevados.
O almoço passou rápido. Foi um verdadeiro prazer. Agora percebo melhor de onde lhe vem o gosto pelas palavras caras, por mostrar que sabe que ao princípio me intrigava e irritava ("óleo e água é uma mistura heterogénea", "água - H2O", e por aí fora).
A verdade é que me ensinou uma forma de preparar cabos para uma manobra que eu não conhecia, ou que pelo menos tinha completamente esquecida. E conseguiu desatar os nós dos cabos que usámos para puxar B., quando eu lhe disse para os cortar, pois não havia nada a fazer.
A parte mais difícil e chata do trabalho está concluída. Agora começa a mais importante, até ao reboque.
Bom trabalho marinheiro.
ResponderEliminarUma pessoa que aproveita tudo que a vida lhe dá merece o melhor, portanto o melhor.
Ab