20.2.12

Tratado de saber viver para jovens casais que decidam emigrar para um país africano ou semelhante

A primeira coisa que os jovens casais que decidem viver num país africano, ou semelhante, devem ter em mente, sempre, é que naqueles países ou se é temido ou se é desprezado. Não há meio termo. As únicas relações reconhecidas são as de força. É preferível - sobretudo quando se quer fazer alguma coisa - ser-se temido a ser-se desprezado.

Claro que há várias maneiras de se fazer respeitar. Gritos, má-criação, pontapés e murros não são, nem de longe, a melhor. Por vezes só fazem com que se seja simultaneamente desprezado e temido, o que não augura nada de bom. Nas novelas do século XIX sobre o Pacífico Sul, por exemplo, essas eram as pessoas que acabavam na boca e restante sistema digestivo dos indígenas.

Pode, e deve, ser-se firme mas polido e bem educado. A verdadeira força é tranquila.

Outro ponto importante tem a ver com a monetarização das relações. Quando uma pessoa tem fome só pensa em comer. Ou melhor, não pensa. A fome é aquilo que no meu 7º ano de liceu designávamos por englobante. A fome ou uma necessidade aguda de dinheiro, seja para o que for - comida, droga, ter um sítio para dormir, dar de comer à família - transforma as pessoas (isto não se aplica só aos países africanos e similares, naturalmente); e elas começam a ver nas relações sociais, humanas, uma fonte de financiamento. Não é bem assim, elas não começam a ver: elas vêem, tout court.

E agem em consequência. Quando interagem com alguém pensam que essa pessoa tem a obrigação de lhes dar dinheiro - e toda a relação é orientada no sentido de nos fazer ver esse facto para eles evidente, linear. Há que resistir à tentação de lhes dar dinheiro sem motivo; mas ao fim de um certo tempo aproveitar um pretexto qualquer para lhes dar uma pequena - sublinho pequena - quantia. E quando digo pequena digo pequena para eles, não para nós, claro. E ao fim de um certo tempo, não logo.

A bondade não é vista como sinal de humanismo, mas de fraqueza.

Porquê dar, então, perguntar-me-ão os jovens leitores interessados em emigrar para um país africano ou similar? Porque nestes países as teias de relações são importantes para as mais pequenas coisas. Aquilo que na Europa ou no norte do continente americano se consegue formalmente - indo a uma loja, a um organismo do governo, à lista dos telefones - aqui depende de quem se conhece, e, sobretudo, de como se é visto. É importante, e muito útil, ser considerado alguém que não é tolo, mas compreende as realidades locais.

Terceiro ponto, e último por hoje: a resolução de problemas. Deve ter-se sempre presente que não se paga para resolver um problema. Nunca. Paga-se para evitar os problemas. É verdade que este axioma exige tacto, sensibilidade e uma grande quantidade de erros na identificação das pessoas certas. Deve ter-se um certo capital para estes erros, inevitáveis; e outro capital para arcar com as consequências, claro. Lembro-me de uma passagem de fronteira no Burundi (uma fronteira que atravessava frequentemente, com o então Zaire) que me levou quatro horas, em vez dos quarenta e cinco minutos habituais. Mas é preciso ter a noção de que se se abre a torneira é muito difícil fechá-la - e o cano de problemas em África, e noutros países semelhantes vem de uma fonte sem fundo.

Há muitas coisas importantes, mas hoje ficamo-nos por aqui. Isto já devia chegar para fazer reflectir os jovens casais - estão verdadeiramente interessados em emigrar para um país africano ou semelhante? Eu não, por exemplo.

1 comentário:

  1. "A bondade não é vista como sinal de humanismo, mas de fraqueza".

    E não é só em África Luís que assim é, mas mais uma vez gostei desta sua crónica. Devia ser publicada.

    Há duas "crónicas" que o achava um pouco diferente, mas com esta reencontrei a sua escrita que é uma escrita bondosa. Ab

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.