15.3.12

Obsessivo-coiso

A Teresa diz que eu sou um obsessivo-compulsivo, ou coisa que o valha. Não me lembro bem. Ela é psiquiatra (ou melhor, era. Pu-la a trabalhar no talho comigo. Também pode usar palavras esquisitas e pelo menos se as usar refere-se a coisas concretas: músculos, ossos, etc.. Agora essas coisas nebulosas da psiquiatria não).

A conversa começou porque tenho o hábito de arrumar as notas na carteira. Quando digo arrumar não é só por valores; é também por números de série. Gasto as mais antigas primeiro (vi uma vez um artigo sobre old money e achei interessantíssimo). Teresa acha isto uma idiotice absurda.

Eu não. A ordem é importante. Sem ordem não há felicidade. Por exemplo, é preciso começar por ser infeliz antes de pensar sequer em ser feliz. Era o que o meu  pai me dizia, quando eu tinha quize anos e não queria trabalhar no talho. O meu sonho era ser caixeiro num banco, poder arrumar as notas à minha maneira e ser reconhecido e recompensado por isso.

Aqui não sou. As pessoas brincam comigo por ser tão meticuloso em tudo: na maneira como arrumo as costeletas, os bifes, as peças de carne, sempre por ordem decrescente de peso - as mais pesadas em baixo; faz sentido, não faz?

Eu acho que sim; mas por vezes tenho a impressão que Teresa me despreza um pouco. Às vezes diz-me "vem cá, meu obscoiso, dá-me um beijo". Ela diz que aquilo é ternura. Vá lá saber-se. Para mim é gozo, não é ternura.

A verdade é que ganhamos dinheiro com o talho. Já funcionava bem com o meu pai, mas eu introduzi-lhe novas funcionalidades, como por exemplo a venda ao miligrama (comprei uma balança Mettler-Toledo, ninguém imagina o prazer que é trabalhar com aquilo. Uma pessoa respira e peso da carne muda). Também levo encomendas a casa, sem qualquer limitação de peso, mínimo ou máximo. Se uma senhora velhinha me pede metade de uma salsicha eu levo-lhe a metade de salsicha - e com um sorriso. Nenhum dos meus colegas pode dizer isso.

Claro que trabalhamos muito, Teresa e eu. Sinto que ela está cansada; às vezes pergunto-me se não estará farta do talho, e com vontade de voltar às suas conversas que não querem dizer nada.

É tudo esquizos e paras - paranóico, esquizofásico, esquizo isto, para aquilo.  E obsesssivo compulsivo, claro. Isso está sempre na boca dela. Como se gostar de ordem fosse uma doença.

Foi por essas e por outras que a proíbi de trabalhar fora de casa (moramos por cima do talho). Talvez ela não goste; mas antes de ser feliz há que ser infeliz, não acham? Pelo menos o meu pai dizia-me isso todos os dias. E estava cheio de razão, coitado.

Morreu cedo, num acidente de automóvel, mas isso fica para outro dia.

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