18.3.12

Parnaíba, Piauí, Brasil, 18-01-2012

"Escrever é bom porque nos impede de pensar naquilo que nos faz escrever." escrevi um dia por aqui. Perdoar-me-ão, espero e peço, a autocitação. Há quem chame a isto sequência de incidentes. Outros, mais românticos ou alucinados, vida de marinheiro. Eu sou um homem simples e chamo uma grande porra.

Saí da pousada às duas da manhã, mas a maré não subiu o que devia ter subido e em consequência não conseguimos pôr o B. na água. Voltei para a pousada, claro, B. é completamente inabitável. Mas a rapariga não acordou; é impossível: só lá vai uma vez de duas em duas semanas e deve ter um estatuto especial porque dorme num quarto (as outras dormem na recepção).  Quarenta e cinco minutos à porta, a telefonar, a gritar deram como resultado ter de vir para uma outra pousada do mesmo dono, relativamente perto.

A qual não tem quartos disponíveis. Está cheia. "Lotada". Consegui convencer o rapaz a deixar-me dormir numa das redes ornamentais à volta do pátio. Ornamentais não é uma palavra vã.

Escrever é bom porque nos permite não pensar naquilo que nos faz escrever. Vou pensar seriamente nisto.

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O que nos trouxe aqui foi um processo moroso e complexo. Descer o B. revelou-se mais complicado do que todos tínhamos previsto. A cereja no bolo foi termos feito uma racha no casco de estibordo que foi preciso reparar.

A largada ficou portanto adiada para as três da manhã.

Mas por uma razão que ignoro a maré não atingiu o nível previsto e não conseguimos arrear B. para a água. Lá está, à boca da carreira como um actor acometido pelo pânico dos palcos no último momento.

Fica para hoje às quatro.

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Já esperei centenas de vezes pela maré. A única coisa que conheço pior é esperar que páre de chover.

Esperar pela maré para sair de um porto deixa-nos num modo que não é nem de viagem nem de terra, ainda estou aqui e já não estou, se a p... da Lua nos fizesse o digníssimo favor de acelerar um bocadinho não se perdia nada, e assim por diante.

A verdade é que a navegação em sítios onde as marés são demasiado pequenas para se fazer sentir, como o Mediterrâneo ou as Caraíbas apresenta outros problemas e exige outras infrastruturas.

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Pelé foi traficante de tabaco durante dez anos. Ia à Guiana Francesa comprá-lo e vendia-o no Brasil. Conhece os buracos todos desta costa, e a verdade é que estou entusiasmado com o percurso que ele quer fazer, por dentro da Baía dos Tubarões. Não tenho cartas, mas fui ao Google e aquilo parece um sonho.

É pena que o recente tráfico de droga tenha transformado o contrabando numa actividade rasca, ignóbil. Em si, contrabandear bens de primeira necessidade como café, tabaco, o ópio da China, aço inoxidável para o Brasil é uma actividade nobre,  cavalheiresca, legítima. Desafiar o direito que os estados se arrogam de decidir o que devemos consumir, e de nos ir ao bolso porque consumimos o que queremos, ou precisamos - e, de passagem, enriquecer por causa disso - é um trabalho louvável.

Não sei o que o fez abandonar a profissão - lembro-me do vendedor de cigarros avulso de S. Luis que me disse que já não se pode vender tabaco estrangeiro porque "a Federal agarra logo" -; mas Pelé abandonou muito antes, há muito tempo.

"Tenho dez casas", disse-me ontem quando íamos procurar parafusos, ou coisa que o valha. "És um homem rico", respondo. "Não, só duas é que valem alguma coisa: aquela onde moro e uma que tenho [disse o sítio, mas já não me lembro onde]; cem mil cada uma. As outras são baratas, dez, doze mil reais".

As casas são em Fortaleza, S. Luis e Parnaíba, naturalmente. Estão arrendadas. Para além disso Pelé compra e vende motores, repara barcos, faz todo o tipo de serviços marítimos. Depois do nosso vai a Fortaleza reconstruir um barco comprado por um tipo do Rio de Janeiro. É um trabalho longo e caro. "Eu já disse ao homem: com barcos, se você vai comprar uma coisa que custa quinhentos, melhor levar mil e quinhentos".

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Só falta esperar que a maré encha e o domingo passe.

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