18.4.12

São Luís, Maranhão, Brasil, 17-04-2012

Além de mim no carro há uma senhora com três crianças. Isso não impede Ângelo de telefonar a um amigo propondo-lhe um negócio "bom para si e bom para mim: você empresta-me cem reais hoje [segunda-feira] e eu pago-lhe cento e vinte na sexta. Tenho de pagar a prestação do carro amanhã, etc. etc.". O amigo diz que sim. Vinte por cento de juros em menos de uma semana só se deitam fora se o devedor não tiver nada, nem um braço para se partir. Ângelo tem os dois, e as duas pernas, e o seu transporte informal de São Luis para Vargem Grande tem toda a aparência de funcionar.

Aproveitei a deixa para lhe falar no mastro e ele pega imediatamente no telefone, fala com A que é amiga de B que é compadre de Z., polícia no posto onde o nosso mastro - vi-o depois - está, estendido no capim como um fósforo gigante deitado fora por um passante descuidado.

O carro é um Fiat pequeno - deve ser um Uno, ou coisa que o valha - mas como vou à frente estou mais ou menos confortável. Ângelo guia correctamente, as conversas são escassas, e a música é, estranhamente, boa - até Ne me quitte pas  ouvi, numa interpretação sofrível, é certo; mas infinitamente melhor do que a bimbalhada habitual. E Simone, também. O rádio é um leitor de DVD e dá uma imagem minúscula, mas suficiente para confirmar que era ela.

Não cheguei a entrar em Vargem Grande: fiquei numa estação de gasolina onde costumam parar os camiões. Andei por ali duas horas, mas de pouco serviu. Deixei o telefone ao senhor do restaurante e a um chauffeur que lá estava a comer e tem um amigo que tem um camião suficientemente grande.

Impossível não me lembrar do Burundi, quando andava pelas ruas de Bujumbura a mandar parar todos os camiões que via passar e lhes perguntava se queriam trabalhar para nós. Durou pouco, uma ou duas semanas; depois organizei uma base de dados de transportadores, e depois ainda veio uma frota de camiões com chauffeurs etíopes, já por aqui falei deles, nunca vi nada mais eficaz do que aqueles homens. A primeira vez na vida que comi comida etíope foi em Buja, numa festa para a qual me convidaram e onde eu pensava a cada momento que íamos todos ser alvo de um ataque: os Hutus ainda estavam em cima e aquilo era só Etíopes e Tutsis. Era o único branco e fiquei para sempre rendido àquele povo, que tanto gostava de conhecer melhor.

Aqui não lido com Etíopes e tenho pena.

Acabei por encontrar um camião já em São Luis: Ângelo - que fez tudo o que podia para me ajudar porque eu lhe disse que o ajudaria a pagar a prestação do carro que se contribuisse activa e concretamente para pôr o mastro aqui - lembrou-se de uma estação de gasolina onde os camiões páram à saída de São Luís. Não é bem uma estação de gasolina. É um enorme terreno onde há centenas de camiões de todas as formas e feitios. Em cinco minutos falei com três motoristas, um dos quais me pareceu credível. No próximo fim-de-semana veremos se a minha intuição foi correcta.

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Domingo fui ao teatro, hoje fui de novo. Num mês em São Luís fui mais vezes ao teatro do que num ano em Lisboa. As peças são de borla ou quase - com excepção de uma - os teatros a cinco minuto da Pousada. O contador está equilibrado - duas fracotas e duas boazitas. Aborrece-me um bocadinho a fisicalidade das representações - os actores parece que vão para o palco fazer ginástica - mas de uma forma geral o nível é bom. O ponto fraco é a encenação - no caso do Premier amour foi confrangedora. A de hoje foi francamente boa.

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Amanhã vamos finalmente pôr B. em seco. Esperar é a coisa que mais odeio, mas aqui é inevitável. Tenho tentado - e conseguido - manter uma pressão "leve, levemente, como quem chama por mim" e parece-me que a estratégia está a dar resultado. O Brasil (pelo menos o Nordeste) é um mercado de fornecedores, não de clientes. São eles que têm o poder. Em breve partirei, felizmente, porque nunca conseguiria habituar-me.

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Tal como não consigo habituar-me à falta de pudor, à indiscrição - bem intencionada, é certo - das pessoas. Mal nos conhecem perguntam-nos o que estamos aqui a fazer, de onde somos (de que país, há imensa gente que me pergunta se sou de Portugal), há quanto tempo chegámos, quanto mais vamos ficar, de que barco se trata (isto é menos frequente, porque normalmente corto curta a conversa), para onde vamos a seguir, se estamos sozinhos ou acompanhados e mais o diabo a sete. Não fiquei absolutamente nada surpreendido com o telefonema de Ângelo à frente dos passageiros.

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De hoje a uma semana chega a minha filha Helena. São Luis vai ficar muito mais bonita.

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São cinco da tarde e o Reviver prepara-se para a noite. As senhoras das bancas à frente do mercado chegam - umas com comida, outras com artesanato -; os bares do mercado enchem-se, e a fauna do bairro - drogados, pedintes, vendedores ambulantes, maricas, travestis, putas, turistas saem das respectivas tocas (as dos primeiros sendo os bancos ou os passeios do bairro). Já conheço algumas pessoas, cumprimentamo-nos como se fosse daqui e já tenho os meus ritos.

Mas estou em modo viagem, nada a fazer. Entre duas águas, ou três; de passagem. Há ano e meio que estou de passagem. E antes disso também estava; não sabia e não queria, mas estava.

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