-- You are reckless! This is your salary, did you know that?
Limpar sanitas de ricos não é uma humilhação. Nem sequer apanhar as suas cuecas do chão. Muito menos o é ver o trabalho (duro, sem folgas) de um mês comparado com um objecto caro e piroso desenhado por uma das mais famosas casas de moda da nossa praça. A humilhação não pode ser infligida, apenas sentida. Aprendi isso nos últimos cinco dias (felizmente, só demorei 24 anos a aprendê-lo). Quando somos adultos e a nossa consciência funciona, não podemos ser magoados, apenas sentir-nos magoados. Parece um pormenor, mas faz toda a diferença. A humilhação que sofri só é real porque a senti. Saída da boca do meu patrão não é nada; só existe quando entra nas minhas células e causa a reacção de nojo que me causou. Isto é válido para a maioria dos sentimentos (vergonha, abandono, até amor), a menos que sejamos crianças. Quando somos crianças, o que os outros nos dizem é tão real como aquilo que sentimos. É por isso que educar uma criança é a tarefa mais difícil e mais subvalorizada de todas. A maioria dos pais faz o melhor que pode (aposto que os pais do meu patrão fizeram o melhor que puderam), e mesmo isso não parece suficiente. «You who must leave everything that you cannot control/It begins with or family but soon it comes round to your soul», canta Cohen. Ter-me libertado da humilhação que senti quando ouvi aquelas palavras significa que é possível controlar o poder das palavras dos outros. Resta-me aprender a controlar o das minhas.
Os barcos são meios de transporte. Uma pessoa pode chamar a um barco a sua casa, fazer dele a sua casa, mas isso não modifica o seu carácter: um barco é um meio de transporte. Se uma casa for sacudida por um terramoto, há uma possibilidade de os objectos que ela contém caírem e se destruírem. No mar existem ondas, equivalentes para um barco a pequenos terramotos. É por isso que a maioria dos mega-iates (usados como casas, como hotéis) têm tudo pregado ou colado às superfícies. As mesas e os sofás estão presos ao chão, os candeeiros às mesas, os objectos decorativos às prateleiras. Quando as coisas não estão coladas e o barco está em movimento, colocam-se num lugar onde se acredita que não se vão partir. Na última vez que viajámos, coloquei o objecto que se partiu entre dois almofadões de uma poltrona, onde sabia que estava seguro. Quando voltei ao camarote, onde o dono tinha estado, o objecto estava no chão. Parti do princípio de que, ainda que estivéssemos em movimento, o dono não queria o objecto onde ele estava, e preferia que estivesse no chão. Passei a colocá-lo sempre no chão. Fez algumas viagens curtas sempre no chão, sem se partir. Ontem partiu-se e o armador passou-se, perguntando-me porque não o tinha posto em segurança. É claro que não me deixou responder.
Acredite o leitor, se quiser, que não se perdeu nada. Tive mais pena das orquídeas que estavam no vaso e se despedaçaram com o impacto do que do vaso em si, da perda do dono ou do trabalho que tive a limpar a merda da carpete manchada de terra húmida. Sempre que olhava para a coisa achava que o mau gosto não tinha limites, ideia que só confirmei quando o armador terminou a "conversa" com a boca sobre o meu salário.
Disse ao capitão o que me fora dito, que o armador queria falar com ele. Informei-o de que estava mais do que disposta a abdicar do meu salário, mas que se o caso fosse esse desembarcaria no momento, porque não só não podia ser acusada de um acidente como não via necessidade de pagar com o meu salário e com o meu trabalho. Para meu espanto, quando o capitão voltou anunciou que o armador lhe tinha pedido desculpa pela maneira como falou comigo e que não queria tirar-me o salário. Não tentarei, sequer, perceber porque não me pediu desculpa a mim.
Desde que Gianni morreu que a Versace nunca mais foi a mesma.
Eu já queria ter dito isto aqui há muito tempo; gosto muito de a ler.
ResponderEliminarAlexandra Pecegueiro
Muito obrigada, Alexandra. Sabe bem ler isso :-)
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