Uma pessoa volta a casa e só lhe apetece praguejar. O Bob Dylan da Costa de la Pols é insuportável. Começa, invariavelmente, com "Knocking on Heaven's Door" -- pela meneira como canta, não me surpreende nada que não o deixem entrar -- e termina com "Baby Can I Hold You Tonight", uma profanação violentíssima do original de Tracy Chapman. Só sabe três acordes e aprendeu-os mal. Consegue transformar a belíssima "Angie", dos Stones, numa atrocidade chamada "Angel". A prova de que Deus é injusto é ter posto "o pior músico de Espanha" (nas palavras de N., o nosso senhorio, músico a sério) numa das suas ruas mais bonitas, a nossa Costa de la Pols. Das outras provas não vale a pena falar, todos as conhecemos.
Os dias foram demasiados e demasiado longos para deles falar. O D. é um barco antigo, decente, com espaços amplos e confortáveis, mas a tripulação não se entende. Senti-me atirada a uma trincheira antes mesmo de ter pisado o convés para a entrevista: encontrei num bar de Palma uma jovem conhecida que tinha acabado de sair do D. a mal e me fez ter vontade de não chegar a ser contratada. Quando cheguei percebi que achava cada um dos indivíduos da tripulação uma criatura impecável, mas que entre eles o ambiente era de cortar ao machado. Não foi fácil ser interrompida enquanto polia copos de tinto para me virem falar mal de A ou B, sabendo que eu só iria ficar no máximo dois meses a bordo. Fiquei um. O anúncio era para dois meses, mas fizeram-me um contrato de um com a explicação "se o dono gostar de ti ficas". O tanas, apesar de o dono ter gostado de mim. Cumpri o contrato até ao fim, fiquei a conhecer Valleta e passei uma hora em Paris, onde comi une baguette de camembert avec un verre de rouge. Estou a tentar tornar-me uma mulher sofisticada, já só me falta falar francês, usar maquilhagem, saltos altos e conseguir ter opiniões sobre política internacional. Verve não me falta.
A entrada no porto de Malta ficou-me no coração. A estibordo estava Valleta, árabe e barroca, com uma luz que desafia a de Lisboa com dignidade. A bombordo Birgu, o nosso porto, uma língua de terra amuralhada, com edifícios marcados pela guerra (os ainda destruídos e os recuperados na mesma medida) e uma frente de mar turística, com um casino e vários restaurantes. Em vez do táxi aquático até Valleta (3€ de ida e outros tantos de volta) optei pelo autocarro (2,60€ um bilhete diário e uma vista mais profunda da ilha). Fui com O., a cozinheira russa que também me ficou no coração, não só pelo que cozinha mas pela maneira fascinante como pronuncia o meu nome (entre os vinte diminutivos diferentes, Tanitschka foi o que mais me agradou, vá lá saber-se porquê).
Malta tem alguns pretos. Não muitos, mas alguns. Comparado com Queluz, onde morava antes de me mudar para as Caraíbas (onde há alguns brancos), não tem pretos nenhuns, mas para O. tinha imensos. Dizia-me "Há tantos, que impressão!" e eu respondia-lhe «Por amor de Deus, tu vives na África do Sul». Respondeu-me que não vinha à Europa para ver pretos e eu demorei três dias a digerir a conversa e a tentar não pensar em O. como uma pessoa horrível. Afinal, para o povo dela os georgianos eram pretos, por terem sido escravos. Senti, pela primeira vez desde que ando nesta vida, um choque cultural. Os malteses impressionaram-me muito mais do que os pretos.
São todos relativamente feios e encardidos. Os narizes são os piores que alguma vez vi na vida (talvez o dono do D., judeu, tenha escolhido a ilha como base por causa dos narizes, não sei); as raparigas pintam-se demasiado, vestem-se pessimamente e são barulhentas, não têm graça nem discrição. Os mais bonitos são os velhotes e as velhotas, mas sempre dentro do desengraçado. Apesar de tudo, a gente é simpática, prestável, tem sentido de humor e inspira respeito: o mal que os malteses sofreram durante a II Guerra Mundial e o bem que, em contrapartida, isso fez à Europa é digno dessa admiração.
Valetta foi mais bombardeada num mês do que a Alemanha inteira durante a II Guerra Mundial, o que explica uma certa esquizofrenia arquitectónica de que ainda hoje padece -- sem na verdade padecer, porque algumas misturas são tão surpreendentes que não conseguimos decidir se as adoramos ou detestamos. A sua posição estratégica fez com que fosse ocupada e disputada desde sempre pelos povos mediterrâneos. Pisar-lhe o chão, ver-lhe a luz e a trovoada é outra prova de que Deus é injusto: há privilégios que deviam ser de todos.
Agora volto ao de sempre. Sei para onde quero ir mas não sei para onde vou. Procuro trabalho e paz (desde sempre, aliás). Para já, nem um nem outro. Mas se Deus é injusto, porque nos fez tão justos? N. acaba de atirar um balde de água anónimo ao Bob Dylan da Costa de la Pols, que o calou imediatamente. Antes já tinha tido a honestidade de lhe dizer "a tua música é uma vergonha" e "és insuportável". Como resposta, recebeu um "vai levar no...". Felizmente, a água lava quase tudo.
Gostava de te ver e ouvir cantar. Ficas ainda mais bonita.
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