28.5.13

Diário de Bordos - Quepos, Costa Rica, 26-05-2013

Chove outra vez, desalmadamente. Chove todos os dias, mas só à tarde. Enfim, normalmente. A regra tem excepções.  Os meus sapatos Sperry, de lona cinzenta e bonita estão outra vez encharcados. Acho que nas últimas duas semanas terão estado secos dois dias, se tanto. Pouco me importa. São uma merda, nunca é de mais repeti-lo; as sandálias também, já estão a desfazer-se, apesar de mal as ter utilizado, seis meses se tanto. Ou então, hipótese tentadora, a marca Sperry não é a bosta que eu penso e sou eu que utilizo o calçado nos lugares errados: ruas, passeios, trilhos de montanha, bermas de estrada; e as coisas são feitas para conveses em teca, camarotes alcatifados, pontões de madeira, clubhouses em parquet. Não sei. Pouco me interessa. No Panamá vou ter de comprar um par de sapatos; e cortar o cabelo, provavelmente. Talvez um maricas mo diga subrepticiamente, como o de S. Francisco. Talvez seja eu que me farte de olhar para o espelho e ver uma espécie de aura dourada, eu que de santo tenho muito pouco e de rico ainda menos.

Chove muito, em Quepos, mas não é uma chuva de qualidade, como a do Burundi ou a do leste do Zaire. Aqui tem mais a ver com a quantidade, com a persistência. Não é como se estivessem a despejar jarros de água dois dias seguidos. Na África Central há dias em que a chuva não é reconhecível, não é chuva, mas outra coisa. Jarros, cataratas, cuspo (de Deus, apresso-me a esclarecer). Aqui um gajo vê logo que está a chover.

Estou outra vez no Gran Escape. Onde ir, com esta chuva? Fica ao lado do hotel merdoso onde estou, só se ouve inglês, e, pela primeira vez, hoje comi mal. Bem feita. Estou - também pela primeira vez - a beber Gin Tonic, que é uma bebida de coisos (quando há Bitter Angustura é de coisas, mas aqui não há).  O gin é uma bebida neutra. Há bebidas mágicas: o mezcal e o absinto; divinas: o vinho, rum, whisky; banais: as outras todas menos a vodka, que é maléfica e o gin, neutro. Transparente. Coiso.

Estou pronto para largar. Só me falta encontrar tripulantes. A próxima vez que tiver um piloto automático vou chamar-lhe Deus, assim mesmo, com maiúscula e tudo. Deus. Com um piloto ir-me-ia embora já. Sem, tenho de esperar. A auséncia de um piloto automático é diabólica. Todas as ausências sâo diabólicas, agora que penso nisso. Todas. As boas e as más.

(Digo isto porque no Panamá vou ter um piloto. Vou encontrar Deus.)

Às vezes penso que devia ser proibido gostar tanto do que se faz como eu gosto do que faço. É diabólico (sabor do dia), maligno: esquecemo-nos dos fundamentos da nossa civilização, da expulsão do paraíso, do vale de lágrimas, da via dolorosa, dessas coisas todas que fizeram de nós o que somos: uma civilização que sabe que a dor existe, e que o dever de todo o ser humano é esquecê-lo. Eu não preciso de o esquecer. Preciso de o lembrar.

Não tarda estou no mar outra vez; não tarda estarei numa grande cidade; não tarda terei um bote em condições. Aquela história dos livros, discos, televisão e sala tem de ser melhor explicada, trocadinha por miúdos. Como a da tristeza, de resto.

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