Marinheiros
Os marinheiros, dizem os franceses, “sabem fazer tudo, vírgula, mal”. Nesse sentido sou um marinheiro nato: sei fazer muitas coisas, e faço-as todas mal. Gosto de escrever – e alguns de entre vós pedem-me para escrever mais vezes; hélas, estou longe, muito longe, da perfeição. Gosto de beber – e não sou o pior nessa arte; mas cada vez suporto menos o álcool, e me suporto quando bebo. Também gosto de fotografar, mas as minhas melhores fotografias estão perdidas algures no Jura Neuchâtelois. E gosto de fazer amor – quem não gosta? É a única coisa que mais vale fazer mal do que não fazer de todo...
Gosto de fotografar como de amar: os gestos param, os olhares interrogam-se, o outro corpo deixa-se acariciar pelo tempo e pela luz, como a vida. Hoje falta-me a vontade de convencer as pequenas, e de andar com a máquina às costas, todos os dias. Mas enfim, divirto-me: faço fotografias demagógicas de leões e de girafas, sempre fáceis e impressionantes. O que já não faço são fotografias de corpos, fáceis ou não: para uns falta-me segurança e aos outros falta sentido.
Falta-me a paciência para amar porque me falta o amor tout court: para amar um corpo feminino há que amar-se, e eu não me amo, detesto-me. Claro que continuo a sonhar com aqueles dois pássaros tantas vezes na gaiola e tão bonitos fora dela, com aqueles ventres lisos como praias soalheiras e salgadas – mas são sonhos, falta-me a energia para os concretizar.
Penso muitas vezes em todas as mulheres em quem encalhei, por quem me perdi e que perdi. Cada corpo é, ou deve ser, um abismo, um recife, um porto após a tempestade, um farol no nevoeiro – nunca tive uma mulher em cada porto, mas cada mulher foi um porto para mim.
Cheguei pela primeira vez a Dunkerque num botezito pequeno, um Rush. Vínhamos de Guernesey e os proprietários deixaram-me ficar a bordo depois do transporte. Foram meses divinos: encontrei trabalho no bar do clube local, encontrei amigos, e vivia como um deus, apaziguado. Nessa altura tinha muita paciência e muita vontade de encontrar namoradas, e de dançar, de me bater nos bares (na verdade, só me bati uma vez). Encontrávamo-nos na “Pilotine”. O barman chamava-se Jean-Paul, mas eu chamava-lhe Johannus Paulus, porque ele era pedante, e eu também, um pouco.
Cada vez que abria a porta do café um braço levantava-se e alguém gritava “Jean-Paul, a primeira cerveja do Luis é para mim”, logo seguido de outro e outro e outro. Quando chegava ao balcão ainda não tinha começado a beber e já estava grosso, naquela atmosfera calorosa, excitante, selvagem. Gosto de Dunkerque como se lá tivesse nascido.
O meu amor por essas regiões começou em Guernesey: entrámos no porto com força 6 no c..., spi em cima, porque estava quase na hora de fecho dos pubs. Fizémos uma manobra magnífica: spi em baixo e nós amarradinhos no lugar. Como em todos os portos ingleses, o fiscal estava à nossa espera, e insultou-nos durante cinco intermináveis minutos: que aquilo não era maneira de se entrar num porto, que a velocidade estava limitada a três nós, que para a próxima vez nos multava, que era coisa de piratas – e terminou a lenga-lenga dizendo, muito britanicamente: “mas tenho que vos felicitar pela vossa manobra de atracação, que foi perfeita. A melhor Guinness é no não-sei-quantos-pub, corram para lá que ainda o apanham aberto”. Corremos, e eu apaixonei-me por aquelas ilhas para sempre; ao contrário da Guinness, de resto, da qual não gosto do xaroposo.
Foi o meu primeiro contacto com a cerveja e com as suas civilizações. Os monjes alemães chamavam à cerveja o “pão líquido” e Deus sabe quanto, oh quanto, eles têm razão. Era a base da minha alimentação, nesses tempos, e ainda hoje olho para a minha barriga irreductível e penso nos dias em que as cervejas que bebia eram mijadas, ejaculadas, batidas a murro, transpiradas ao som de músicas hawaianas e convertidas em intermináveis, mas geralmente recompensados, diálogos nas praias do mar do Norte.
Em Dunkerque eu tinha o barco a poucos minutos da Pilotine e era feliz, todo-poderoso, invencível. Um dia apaixonei-me: uma rapariga bela e doce, com quem vendia livros pró-independência da Flandres e fazia amor nas margens dos canais cobertos de nevoeiro. Às vezes parávamos para beber uma cerveja naqueles moínhos transformados em cafés e eu olhava para os cabelos dela, que tinham a cor da cerveja, e para os olhos, que eram azuis escuros como o mar num dia de muito vento e ainda a amava mais; e pedia-lhe silenciosamente que me perdoasse todo o mal que um dia lhe viria a fazer, e que eu mesmo ainda não sabia qual seria. Quase morri por causa dela, numa praia perto de Sintra, e ela não percebia porquê, eu nadava contra uma corrente insensata, contra uma quantidade incalculável de bagaceiras e vinho, e contra o meu medo.
Nem quando estou bem estou bem. E agora escrevo estas coisas a ouvir o Willie Nelson, que tem letras lindas sobre a solidão, e ninguém imagina a solidão e o horror em que vivo. E o medo... digo sempre ao meu filho que só os idiotas não têm medo, que ser corajoso não é não ter medo, mas sim vencer o seu medo. E tenho medo. No mar os medos são diacrónicos, vêm sempre antes ou depois do pior acontecer; não estou no mar, mas sei que o pior ainda está para vir.
Maputo, 1999.
Gosto de fotografar como de amar: os gestos param, os olhares interrogam-se, o outro corpo deixa-se acariciar pelo tempo e pela luz, como a vida. Hoje falta-me a vontade de convencer as pequenas, e de andar com a máquina às costas, todos os dias. Mas enfim, divirto-me: faço fotografias demagógicas de leões e de girafas, sempre fáceis e impressionantes. O que já não faço são fotografias de corpos, fáceis ou não: para uns falta-me segurança e aos outros falta sentido.
Falta-me a paciência para amar porque me falta o amor tout court: para amar um corpo feminino há que amar-se, e eu não me amo, detesto-me. Claro que continuo a sonhar com aqueles dois pássaros tantas vezes na gaiola e tão bonitos fora dela, com aqueles ventres lisos como praias soalheiras e salgadas – mas são sonhos, falta-me a energia para os concretizar.
Penso muitas vezes em todas as mulheres em quem encalhei, por quem me perdi e que perdi. Cada corpo é, ou deve ser, um abismo, um recife, um porto após a tempestade, um farol no nevoeiro – nunca tive uma mulher em cada porto, mas cada mulher foi um porto para mim.
Cheguei pela primeira vez a Dunkerque num botezito pequeno, um Rush. Vínhamos de Guernesey e os proprietários deixaram-me ficar a bordo depois do transporte. Foram meses divinos: encontrei trabalho no bar do clube local, encontrei amigos, e vivia como um deus, apaziguado. Nessa altura tinha muita paciência e muita vontade de encontrar namoradas, e de dançar, de me bater nos bares (na verdade, só me bati uma vez). Encontrávamo-nos na “Pilotine”. O barman chamava-se Jean-Paul, mas eu chamava-lhe Johannus Paulus, porque ele era pedante, e eu também, um pouco.
Cada vez que abria a porta do café um braço levantava-se e alguém gritava “Jean-Paul, a primeira cerveja do Luis é para mim”, logo seguido de outro e outro e outro. Quando chegava ao balcão ainda não tinha começado a beber e já estava grosso, naquela atmosfera calorosa, excitante, selvagem. Gosto de Dunkerque como se lá tivesse nascido.
O meu amor por essas regiões começou em Guernesey: entrámos no porto com força 6 no c..., spi em cima, porque estava quase na hora de fecho dos pubs. Fizémos uma manobra magnífica: spi em baixo e nós amarradinhos no lugar. Como em todos os portos ingleses, o fiscal estava à nossa espera, e insultou-nos durante cinco intermináveis minutos: que aquilo não era maneira de se entrar num porto, que a velocidade estava limitada a três nós, que para a próxima vez nos multava, que era coisa de piratas – e terminou a lenga-lenga dizendo, muito britanicamente: “mas tenho que vos felicitar pela vossa manobra de atracação, que foi perfeita. A melhor Guinness é no não-sei-quantos-pub, corram para lá que ainda o apanham aberto”. Corremos, e eu apaixonei-me por aquelas ilhas para sempre; ao contrário da Guinness, de resto, da qual não gosto do xaroposo.
Foi o meu primeiro contacto com a cerveja e com as suas civilizações. Os monjes alemães chamavam à cerveja o “pão líquido” e Deus sabe quanto, oh quanto, eles têm razão. Era a base da minha alimentação, nesses tempos, e ainda hoje olho para a minha barriga irreductível e penso nos dias em que as cervejas que bebia eram mijadas, ejaculadas, batidas a murro, transpiradas ao som de músicas hawaianas e convertidas em intermináveis, mas geralmente recompensados, diálogos nas praias do mar do Norte.
Em Dunkerque eu tinha o barco a poucos minutos da Pilotine e era feliz, todo-poderoso, invencível. Um dia apaixonei-me: uma rapariga bela e doce, com quem vendia livros pró-independência da Flandres e fazia amor nas margens dos canais cobertos de nevoeiro. Às vezes parávamos para beber uma cerveja naqueles moínhos transformados em cafés e eu olhava para os cabelos dela, que tinham a cor da cerveja, e para os olhos, que eram azuis escuros como o mar num dia de muito vento e ainda a amava mais; e pedia-lhe silenciosamente que me perdoasse todo o mal que um dia lhe viria a fazer, e que eu mesmo ainda não sabia qual seria. Quase morri por causa dela, numa praia perto de Sintra, e ela não percebia porquê, eu nadava contra uma corrente insensata, contra uma quantidade incalculável de bagaceiras e vinho, e contra o meu medo.
Nem quando estou bem estou bem. E agora escrevo estas coisas a ouvir o Willie Nelson, que tem letras lindas sobre a solidão, e ninguém imagina a solidão e o horror em que vivo. E o medo... digo sempre ao meu filho que só os idiotas não têm medo, que ser corajoso não é não ter medo, mas sim vencer o seu medo. E tenho medo. No mar os medos são diacrónicos, vêm sempre antes ou depois do pior acontecer; não estou no mar, mas sei que o pior ainda está para vir.
Maputo, 1999.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.