11.2.14

Diário de Bordos - Cartagena de Indias, Colômbia, 11-02-2014

Por onde começar - pelo princípio, pelo meio, pelo fim?  Nada tem fim; e o princípio há que que procurá-lo muito bem, não é fácil de encontrar. Nada começa; e nada acaba verdadeiramente: um amor que se transforma em amizade, em desprezo ou em esquecimento; uma viagem da qual recordamos cada momento; uma esperança que se confirma ou, ao contrário, que não se realiza: como dizer que acabaram? Quando?

Cheguei hoje a Cartagena das Indias; estou numa livraria / café a ouvir excelente música, beber excelente rum e a pensar que essa é a melhor combinação do mundo - boa música numa boa livraria numa cidade encantadora com uma boa bebida. Podia ser Lisboa, a Ler Devagar e um bom vinho, não é?

Sim. Mas a versão local da Ler Devagar chama-se Ábaco, é aproximadamante cinquenta vezes mais pequena e quase tão bonita.

Quase.

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Em Cartagena as pessoas sabem combinar dignidade com simpatia. Na Isla San Andrés, o outro lugar da Colômbia onde estive, também. É pouco para generalizar, mas talvez seja uma característica colombiana. Tão diferente do Panamá, habitado por um bando de palhaços façanhudos e antipáticos.

O meu amor por Cartagena não começou hoje; começou ainda eu não conhecia a cidade, ainda nada sabia dela. Nada começa, apenas continua.

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O objectivo da viagem era conhecer o HELENA S., saber como se porta no mar e ver o que se partiria.

Seria dramático dizer que algumas coisas não se partiram. Foram poucas. Mas mesmo assim mais do que o que se avariou: vela grande rasgada no punho da escota, correia do piloto automático partida, painel do motor de estibordo estralhaçado, layy jack de estibordo rebentado; e água. Água. Os albóis fechados metem água como se estivessem abertos, como um campo seco acolhe a chuva, como se algum deus maldoso quisesse transformar a velha piada "o apartamento é pequeno, mas a piscina grande" em "o apartamento é pequeno, mas tem uma piscina enorme lá dentro".

Mas o barco é sublime. Sublime. É rápido (até a grande rebentar fizemos uma média de oito nós - ceci n'expliquant que partiellement cela-), sensível ao leme, passa maravilhosamente na vaga - se bem lhe falte um pouco de volume nas proas -; uma espécie de puro sangue disfarçado de mendigo, à espera de um sapo que o transforme.

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Não há sítio melhor para um gajo se engrossar do que uma livraria: o frenesim dos bares transforma uma grossura séria e compenetrada numa vulgar bebedeira.

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"A noite antes da largada foi horrível. Estava apreensivo, não sabia como iria o HELENA S. portar-se nno mar, e a tripulação e os passageiros nele.

Tinha razões para estar apreensivo, claro: dizer que o barco precisa de um refit é um doce eufemismo; custa-me receber dinheiro para transportar pessoas em barcos que não estão em condições; e, finalmente, tenho uma tripulação nova.

Algumas dessas razões confirmaram-se: apanhámos algum vento logo à largada e em menos de nada tinha quatro polegadas de água nos fundos dos camarotes de vante (as escotilhas das casa de banho precisam de juntas novas, já); o quadro eléctrico fez das suas (é preciso refazer todo o sistema eléctrico deste barco, já); e, por fim mas não por último, tinha muito pouco dinheiro, pois deixei a maior parte do que fiz com a viagem a A.

Comecemos pelo fim: os meus cálculos dolorosos, esticados pelos cabelos, jogados pela cintura revelaram-se correctos e houve dinheiro para as formalidades e para as compras (fica aqui um agradecimento e os parabéns à Danielle, a jovem stew, que fez milagres com o orçamento que lhe dei).

O quadro eléctrico deve ter-se assustado com as pragas que silenciosamente lhe roguei e deixou de ageniar (batro três vezes na madeira).

Quanto à tripulação: creio que finalmente encontrei aquilo de que o HELENA S. precisa: um jovem casal mas com uma experiência notável, absolutamente desproporcional à idade (dele, ela é mais velha), bem educados, vivos, sorridentes, “leves”. E, cereja no topo do bolo, Luka sabe o que é um Kelsall: os pais têm um. E partilha o meu amor – quem não? - por estes barcos simples, bonitos, rápidos. Em Isla Grande, onde fundeámos, estava o primeiro Kelsall construído – é de 1964 e é lindo, elegante, sem idade –.

Porque lá na rapidez tenho provas: dez onze nós regularmente e por longos períodos, média final do primeiro dia oito (enfim, de parte do primeiro dia). Claro que o barco molha um bocado – as proas não perdiam nada em ser um bocadinho elevadas – e faz um barulho digno dos barcos de regata de que descende. Mas que prazer é navegar isto, que lindo, que sorte, que bênção.

Claro que num squall um bocadinho mais forte não rizei a tempo e a grande rasgou-se no punho da escota. Agora vamos de primeiro rizo, para ver se aprendo a ter juízo.

Mas vamos a fazer seis nós, e mesmo descontando a corrente é honorável.

(Apetece-me encher-me de bofetadas, arrancar-me os cabelos e dar-me muros nos tomates.)"

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Não há princípios nem fins: estamos sempre no meio de qualquer coisa, num continuum sem partidas nem chegadas; ou melhor, do qual as partidas são chegadas e estas o início de uma nova viagem, de um novo ciclo. O que hoje parece começar começou na realidade há muito tempo; e o que parece acabar acabou com certeza muito antes de começar. Por isso o desespero não dura, e esperança não acaba.

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Cheguei hoje pela primeira vez a Cartagena, mas na verdade vivo aqui. Tal como nunca deixo Lisboa, Bequia ou o mar: geografias e tempos que se misturam como bolas nas mãos de um malabarista amáavel e todo-poderoso, como o vento se mistura com a luz, como o passado se mistura com o presente e o futuro.

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