11.7.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 11-07-2014

O trabalho começou, finalmente. O ritmo não é alucinante - estamos no Maranhão - mas avança. Cada vez que chego ao estaleiro há gente a bordo, a mexer-se, medir, cortar, pensar. A trabalhar, em suma.

A vida muda, claro. Gostaria muito que o meu bem-estar psíquico dependesse um bocadinho menos do trabalho mas não consigo, infelizmente.

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Ontem havia música na rua, como todos os fins de semana. Pela primeira vez desde que cheguei era boa. Isto é, não era simplesmente barulho.

Gostei particularmente da rapariga das congas. Terá vinte anos? Talvez. Mas toca com a calma, distância, precisão de quem o faz desde que nasceu.

Tem a regularidade de um metrónomo. Não falha um tempo. Está concentrada, mas por vezes deixa-se ir e sorri, troca um olhar com o rapaz das percussões à sua direita ou com a cantora.

Não sei como definir isto: por detrás de uma aparente falta de criatividade escondem-se talento e horas de  trabalho. A criatividade é isso, pela ordem inversa. Trabalho e talento. Ou talvez seja o talento que é composto por trabalho e criatividade. Não sei.

Não sei o que é o talento. Aliás: sei. Mas ignoro de que é feito. Só conheço os seus efeitos sobre mim. Esta beatitude, espanto, rendição.

Oiço a miúda tocar - são tambores, não congas - e pergunto-me se um dia escreverei tão bem como ela toca. Provavelmente não.

Mas espero um dia escrever com a mesma calma, a mesma certeza. A de um rio que sabe onde está a foz.

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O Brasil é um campo de estudo ideal para quem se interesse pela teoria do caos. Tudo é caótico. E todos os tipos de caos coabitam tão bem como as diferentes classes sociais: o caos visual, auditivo, olfactivo, o trânsito... tudo isto com uma hiper- "sensibilidade crítica às condições iniciais"; que existem com certeza. Basta encontrá-las. Quais serão - a pobreza? A indisciplina e concomitante irresistível atracção pela desordem? Uma coisa é certa: o conceito de entropia não se aplica à vida quotidiana na S. Luís do século XXI.

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A vida, esse conjunto de altos e baixos a que um marinheiro chama cristas e cavas soma e segue. Nós desatam-se, encruzilhadas clarificam-se, vontades definem-se. Olho para o ano e meio que acabo de passar e pergunto-me se a carga que trazia era assim tão pesada, para exigir tanto tempo antes de conseguir alijá-la.

Era. Um erro, um só, chega para definir uma quantidade de coisas. Não é só S. Luís que é híper-sensível às condições iniciais. A vida é um sistema aberto, dinâmico não linear, alimentado por equações indeterminísticas. Circuitos fechados (é assim que se traduz loops?), retroalimentação (ditto feedbacks), efeito borboleta...

Tantas palavras, tantas maneiras de definir o que no fundo é indefínivel, o que não tem palavras, o que se recusa a desaparecer, a dar-se, a fechar-se.

A vida é o que é mai-lo que dela fazemos. E as borboletas.

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