27.7.14

Diário de Bordos - S. Luís, Maranhão, Brasil, 26-07-2014

Acabei por me render à evidência e fui ao médico. Ontem I. sugeriu-me um centro de saúde não muito longe da pousada e foi lá que passei a manhã de hoje. O centro (Socorrinho, os brasileiros têm as nomenclaturas imagéticas) é simples mas foi rápido, eficaz, cordato e gratuito.

Protela-se a ida ao médico porque não se quer admitir que a carcaça sozinha não sabe tratar-se. E perde-se tempo para nada. Desta vez quase uma semana de dores e febre.

Enfim, esta passou. Que a próxima venha longe.

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Agradabilíssimo serão em casa de Celso Borges, excelente poeta, músico e pessoa. Estava também Bruno Azevêdo, autor dessa obra-prima da literatura gore que é O Monstro Souza, "romance festifud", "história de um cachorro quente de 1,80m que trabalha como loverbói e serial killer em São Luís do Maranhão", etc.

Mistura de quadradinhos, recortes de jornal, prosa e mais meia dúzia de formas de expressão, o Monstro Souza é uma deambulação quase situacionista por S. Luís.

Não esperava encontrar tanto conhecimento da poesia portuguesa, aliado a uma ainda maior vontade de a conhecer mais e melhor. A ideia de organizar uma viagem de poetas e autores de S. Luis a Lisboa em Fevereiro começa a tomar forma e corpo.

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Quinta~feira fui ao dentista. Não me chegava a febre. No regresso hesitei em apanhar um táxi, mas acabei por vir de autocarro. Uma das grandes decisões dos últimos tempos.

O condutor era formado em condução desportiva de autocarros, especialidade guerrilha condução urbana. Conduzia aquele veículo como se estivesse numa pista de corridas. A certa altura chegámos a um engarrafamento monstro, provocado por trabalhos na rua e o homem quase explodia. "Este prefeito", explicava-me (estava ao lado dele, de pé ) "não é só ladrão. Ele é também pilantra. Safado. Fazer obras nesta rua a esta hora".

Eu estava indeciso: S. Luís precisa de obras em praticamente todas as ruas (menos as que servem os bons quarteirões e mesmo assim só as principais) e se um prefeito que seja só ladrão - coisa aceitável pela inevitabilidade - quiser fazê-las vai precisar das vinte e quatro horas de todos os dias de largos anos: por outro lado era difícil não estar do lado do meu condutor de corridas.

Que a certa altura não tem meias medidas e mete o autocarro por uma ruazinha paralela à rua engarrafada e por ali vai dois ou três quarteirões.

Quando regressamos ao percurso estamos muito perto da causa do engarrafamento. Faz sinais a um colega (mas de outra companhia, os transportes urbanos são privados e estão distribuídos por várias empresas) que simpaticamente o deixa entar; uma senhora num ligeiro não faz o mesmo e quase temos um acidente. Enfim, ganhámos bastante tempo.

O condutor está contente. Guia concentrado, mas de vez em quando relaxa e dialoga comigo. "De onde você vem?" por exemplo. Ou monologa: "A amizade é a coisa mais importante do mundo. Não é o dinheiro nem o amor. É a amizade. Viu aquele colega? Ele deixou-me passar por amizade. Não nos conhecemos, mas ele está para sempe no meu coração". Depois concentra-se de novo na condução e puxa por aquele motor, esqueira-se pelo trânsito, acelera e trava como se quisesse demonstrar aos passageiros e ao mundo que pouco interessa o veículo, o que importa é o que com ele fazemos e somos.

Já perto do sítio onde ia descer entrou uma jovem a comer uma maçaroca. O condutor pede-lhe um bocadinho, ela estende-lhe a maçaroca ele diz "Não, parte um bocadinho", ela parte, ele come, a rapariga segue para trás e ele diz-me "Eu não lhe dizia? A amizade é o mais importante". Ao princípio pensei que se conheciam, mas não. O homem não só conduz como um ás, mas faz amigos também.

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