3.8.14

Vozes

São vozes que vêm de debaixo da mesa e se misturam com os copos de whisky, caipirinhas, rum punch, vinho de toda uma vida cheia de mesas e copos e perguntas. Vozes que não trazem respostas, só perguntas, mais perguntas como se não chegassem as que arrastamos connosco desde a merda do berço. Vozes que nos dizem estás errado - como se não o soubéssemos há séculos -; vozes que nos gritam ou nos sussuram mas nunca nos falam num tom normal, como se fôssemos selectivamente surdos - só ouvimos o que nos vem de debaixo da mesa - como se não soubéssemos há tempos sem fim que o tempo não tem fim, que nada nunca acaba, nada recomeça, tudo não faz mais do que continuar - da vulgar ingratidão mais rasteira às estrelas há uma estrada que não se interrompe não se parte não se dobra não volta atrás nem salta torrentes -. Da vulgaridade às estrelas não vire à esquerda nem à direita, vá em frente, sempre em frente. É sempre a descer se subir está enganado.

Vozes que saem do tempo da noite da luz de um navio que sai do porto um avião que aterra um automóvel na estrada um copo vazio numa mesa cheia de copos vazios, mais um. Vozes. Da noite da névoa das nuvens da mesa cheia de copos vazios. Vozes roucas de gritar o fim do tempo. Vozes roucas de gritar ao vento. Vozes que do abismo sabem mais do que qualquer espeleólogo, sentadas que estão no abismo desde que o abismo foi inventado.

Vozes de beber e chorar por mais, vozes de ouvir e calar por menos, vozes que não se cheiram, vozes. E um surdo.

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