FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Às vezes as coisas dentro de nós
O que nos
chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga
de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer
coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna
piedosos, como quem já tem fé.
Nós que
tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo
movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao
zero irradiante, ao ver
o que foi
grande, o que foi pequeno, aliás
o que não
tem tamanho, mas está agora
engrandecido
dentro do novo olhar.
Estrada de Fogo
Pedra a
pedra a estrada antiga
sobe a
colina, passa diante
de musgosos
muros e desce
para nenhum
sopé;
encurva, na
abstracta encruzilhada;
apaga-se, na
realidade. Morre
como o
rastilho do fogo,
que de campo
em campo aberto
seguia, e ao
bater na mágica cancela
dobrava a
chama, para uma respiração,
e deixava o
caminho do portal
incólume e
iniciado.
AL BERTO
Notas para o diário
deus tem que
ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas
sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e
limpos.
a dor de
todas as ruas vazias.
sinto-me
capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e
na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me
capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo
mesmo.
a dor de
todas as ruas vazias.
mas gosto da
noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e
do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos
encontros inesperados.
pernoito
quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde
o medo tem a precaridade doutro corpo.
a dor de
todas as ruas vazias.
pois bem,
mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na
fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do
mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é
preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.
a dor de
todas as ruas vazias.
sujo os
olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme
acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas
as ruas vazias.
os poemas
adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na
perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e,
por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens,
rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada
escrevo.
o regresso à
escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma
esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de
todas as ruas vazias.
DAVID MOURÃO-FERREIRA
Ternura
Desvio dos
teus ombros o lençol
que é feito
de ternura amarrotada,
da frescura
que vem depois do Sol,
quando
depois do Sol não vem mais nada...
Olho a roupa
no chão: que tempestade!
há restos de
ternura pelo meio,
como vultos
perdidos na cidade
em que uma
tempestade sobreveio...
Começas a
vestir-te, lentamente,
e é ternura
também que vou vestindo,
para
enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa
ternura anda sorrindo...
Mas ninguém
sonha a pressa com que nós
a despimos
assim que estamos sós!
PELE
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que
tua pele ser a pele da minha pele?
Cintilação
de luas
assim que te desnudas
às escuras
Diante do
teu ventre
como não
dizer “sempre”
novamente.
Ó lâmina e
bainha
de outra
espada ainda
Tua língua
Ruge.
Reprende. Arrasa
Desde que sempre o faças
com as asas
Vem dos arcanos
de outro tempo
ou dos anéis de outra galáxia
esta
espessura transparente
que só na
cama as almas ganham
POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes
os meses oceanos
E por vezes
os braços que apertamos
nunca mais
são os mesmos. E por vezes
encontramos
de nós em poucos meses
o que a
noite nos fez em muitos anos
E por vezes
fingimos que lembramos
E por vezes
lembramos que por vezes
ao tomarmos
o gosto aos oceanos
só o sarro
das noites não dos meses
lá no fundo
dos copos encontramos
E por vezes
sorrimos ou choramos
E por vezes
por vezes ah por vezes
num segundo
se evolam tantos anos.
INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS
Mal fora
iniciada a secreta viagem
um deus me
segredou que eu não iria só.
Por isso a
cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser
a luz que deus me segredou.
Praia do Esquecimento
Fujo da
sombra; cerro os olhos: não há nada.
A minha vida
nem consente
rumor de
gente
na praia
desolada.
Apenas
decisão de esquecimento:
mas só neste
momento eu a descubro
como a um
fruto rubro
de que, sem
já sabê-lo, me sustento.
E do Sol
amarelo que há no céu
somente sei
que me queimou a pele.
Juro: nem
dei por ele
quando
nasceu.
EUGÉNIO DE ANDRADE
À Beira de Água
Estive
sempre sentado nesta pedra
escutando,
por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago
cair um fiozinho de água.
O lago é o
tanque daquela idade
em que não
tinha o coração
magoado.
(Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto!
Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de
privação.) Estou onde
sempre
estive: à beira de ser água.
Envelhecendo
no rumor da bica
por onde
corre apenas o silêncio.
Devias estar aqui rente aos meus lábios
Devias estar
aqui rente aos meus lábios
para dividir
contigo esta amargura
dos meus
dias partidos um a um
- Eu vi a
terra limpa no teu rosto,
Só no teu
rosto e nunca em mais nenhum
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.