São nove e meia da manhã de sábado e ainda estou na cama a pensar no que já fiz - tomei o pequeno almoço e pus a roupa na máquina - e no que falta fazer: duche, lavar a loiça e limpar o fogão do chilli de ontem (deixei-o queimar, malditas panelas sem qualidade), ir andar de bicicleta (não meço a glicemia há vários dias, não quero estragar a excelente média que o aparelho deve ter na memória), escolher os poemas que logo vou ler na Cidade Ocupada, ensaiá-los, tirar a roupa da máquina e pendurá-la...
Não faço nada disso. Fico na cama com uma ressaca média (cinco em dez, quase não dou por ela) a ouvir os madrigais de Gesualdo, os quais me levam a Caravaggio e a pensar no enorme potencial inspirador da má consciência.
Escrevo no telefone; lembro-me da alegria de não cumprir um dever, tão boa como estar no campo; comparo o rum e a cachaça - são incomparáveis -. Daqui a uma semana terei vinho bom e barato e reencontrarei a minha Rolex, as ruas amadas (e cada vez mais sujas) de Lisboa, irei a Évora e a Mértola.
Não progredi muito no The Sea, esta semana foi em forma de não.
Porque é que a música de Gesualdo é tao parecida com os quadros de Caravaggio? Ambos eram assassinos, mas só superficialmente se podem confundir. Gesualdo matou a mulher e o amante (com uma crueldade arrepiante, é verdade) por ciúmes; Caravaggio era um arruaceiro.
Os dois vão ao fundo do ser, tocam naquela zona de nós em que não se distinguem os sentimentos das emoções da razão da carne do sangue do ser.
A loiça pode esperar? Não. Reclamo frequentemente contra as pessoas que deixam a cozinha suja. Enfim, pelo menos não está desarrumada, empilhei as panelas que usei num canto e limpei a mesa. E pus água no fogão, não vai ser difícil de limpar.
Estou furioso comigo (enfim, estaria, se tivesse vontade) por ter deixado queimar o chilli. Estava tão bom.
Vou levantar-me. Abençoado telefone que me permite escrever na cama. Esperam-me a casa e a cidade. A Casa e o Mundo. Queria tanto reler esse livro. E a poesia dele "onde as estradas estão traçadas perco-me..." "o viajante tem de bater a todas as portas estrangeiras até encontrar a sua..." Será assim? Vou confirmar e volto a deitar-me.
O duche. A loiça. Daqui a pouco a roupa está pronta. Seleccionar os poemas. Todo o cais é uma saudade de pedra. Saudade. Quantas vezes escrevi e disse essa palavra? Quantas mais terei ainda de a dizer a alguém, de a pensar ou sofrer?
Gesualdo, vou tomar banho.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.