Ontem fui ao Café Tati ouvir jazz, beber vinho tinto e, se Deus tivesse querido, engrossar-me. Infelizmente não consegui. Cheguei a uma idade em que só me engrosso quando quero, mas nem sempre consigo apesar de querer.
Talvez no fundo não o desejasse suficientemente; talvez não precisasse.
O almoço foi bom, leve, fácil, num restaurante da margem sul à beira rio. Daqueles de onde Lisboa parece uma aldeia de brincar e o Tejo uma catedral gótica da qual as torres escorrem para o céu em vez de subirem.
O jazz veio depois.
As jam são lideradas por Gonçalo Marques, um líder seguro, conhecedor, atento. Do grupo habitual faz parte um contrabaixo, uma guitarra, uma bateria e um sax (não me lembro dos nomes de cada um deles). São todos bons, mas tenho uma atracção especial pelo baixo e pelo sax.
Em Genebra havia um gajo que tocava sax assim. Ouvia-se-lhe a primeira linha e pensava-se "Este gajo toca como um deus".
O de hoje é quase a mesma coisa, com uma diferença ou duas: tem frases mais curtas, mais secas (se bem nunca abruptas); e está muito cheio de si próprio. Precisa de aprender a esquecer-se um bocadinho.
A última vez que ouvi o saxofonista de Genebra foi numa festa no jardim da Universidade. Era um ambiente triste, glauco; a festa estava praticamente vazia. Ainda tenho fotografias dessa noite, indizivelmente tristes. Perguntei-lhe (isto passou-se largos anos depois de o ter ouvido pela primeira vez. Ele continuava tão conhecido apenas de um círculo restrito de pessoas como sempre fora) porque continuava no anonimato tão completo. "Bof. Je m'en fous d´être connu. C'est pas mon truc" respondeu e encolheu os ombros. Não me lembro do nome, mas ainda me lembro do seu jogo longo, arrastado (mas não meloso), como se dialogasse com aquele deus que claramente o habitava - pelo menos quando tocava saxofone - e lhe dissesse "Je m'en fous. Ils ne sont pas mon truc".
O saxofonista que ontem ouvi no café Tati toca como um deus, mas ainda não fala com ele. Está demasiado ocupado a ouvir-se.
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Ouvi o Gonçalo falar com alguns dos músicos, antes da sessão começar. Fá maior, dó, fá maior, etc. (estou a inventar, não vão pensar que transcrevi uma composição qualquer). A minha perplexidade é a mesma do que a dele, provavelmente, se ouvisse um grupo de marinheiros comentar uma manobra. Com duas diferenças: nós temos mais notas, e somos menos generosos: as emoções que elas suscitam não são partilháveis.
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Quem vive em Lisboa e não gosta de domingos devia considerar seriamente vir ao Tati às cinco da tarde desses dias fatais. Aposto que muda rapidamente de opinião e começa, como eu, a pedir que o próximo venha depressa.
O que teria sido preciso fazer em Lisboa há trinta anos para ouvir jazz assim? Apanhar um avião para Nova Iorque.
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Ontem fui comprar flores ao mercado da Ribeira, para oferecer a uma senhora que vi chorar. Não gosto de ver senhoras chorar, apesar de ter uma certa inveja: se eu tivesse chorado cada vez que uma delas o quis teria os olhos mais bonitos do universo.
Enfim.
A verdade é que vi-a chorar e fui ao Mercado fazer qualquer coisa e passei à frente da loja de flores e comprei um ramo de já não sei o quê. Por detrás de seja qual for a razão que faz uma senhora chorar está sempre, inescapável, inelutavelmente uma injustiça.
As flores não servem apenas para combater injustiças, claro. Também servem para as prevenir ou, mais prosaicamente, para dar cor e natureza a uma casa; ou para mostrarmos a uma senhora que ela nos marcou, e que temos bom gosto.
Servem para tudo, as flores. Até para as oferecermos a nós próprios, nos dias em não há injustiças perto, ou senhoras que mereçam ser lembradas.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.