O último vestígio físico de um soberbo e desvairado dia em Cólon, Panamá, há pouco mais de um ano ficou no aeroporto de Lisboa. Era um frasco de Fahrenheit de 200 ml. Tinha previsto trazê-lo no porão, mas por razões que nem de peso eram tive de trazer o saco onde ele estava na mão e não passou no filtro de segurança.
A esse incidente - que me aborreceu mas pouco - seguiu-se uma das melhores viagens de avião dos últimos anos. Saímos à hora, o voo estava praticamente vazio, a refeição excelente, a tripulação de cabine - aliás como sempre na TAP - eficaz e amabilíssima.
Não sei se para pagar isto se por uma questão de simetria em Belém o senhor da alfândega decidiu reter as peças pelas quais tanto tempo esperei em Lisboa.
Estou habituado a lidar com pessoal das alfândegas, mas nunca na vida vi coisa semelhante, filho da puta maior.
Uma das pessoas com quem comentei o caso, ainda no aeroporto, explicou-me que ele é um "comprador de confusão" e contou-me duas ou três histórias escabrosas a seu respeito.
Coisa que não chega, nem de perto, para atenuar a raiva, a fúria, o desprezo, o asco que sinto pelas alfândegas em geral e pela brasileira em particular.
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Mas a chegada foi mais do que este desagradável e inesperado contacto com uma das coisas de que o meu desgosto pelo o Brasil é feito. Menor do que o sentimento extremamente negativo que sinto pelas alfândegas, quaisquer que sejam - mas mesmo assim bastante forte - é o que nutro pela burocracia. E a burocracia brasileira é fantástica. Faz Kafka passar por um escritor infantil.
Excedi de novo o meu período de estadia. Desta vez em dois dias. Ou seja, agora a multa é de dezasseis reais, cerca de três euros. É um problema complexo, pagar dezasseis reais de multa (da última vez foram três dias e vinte e quatro reais; fiquei quatro horas no gabinete da Polícia Federal enquanto os funcionários faziam tudo o que podiam para me ajudar. Desta vez foram só duas horas e meia, o que demonstra que não há proporcionalidade directa entre o tempo que se perde e o montante). Compreende as seguintes etapas:
a) Pedir a um funcionário da companhia aérea que se disponibilize para pagar a multa com o seu cartão de débito. Isto é feito pelo polícia federal, porque eu não posso abandonar o sítio onde me encontro - o controle de passaportes do aeroporto.
A multa não pode ser paga em dinheiro e só o pode ser com um cartão de débito - todos sabemos que os estrangeiros têm contas no banco no Brasil, naturalmente.
b) O dito funcionário - neste caso Daniel, da TAP, simpátiquíssimo e prestável como todos os funcionários da TAP - descobre que não pode fazer o pagamento porque o código de barras caduca ao fim de quinze dias; claro que um estrangeiro que apanhou uma multa ao sair do Brasil tem como principal prioridade pagá-la ao chegar ao seu país. E igualmente claro é que no seu país há agências do Banco do Brasil, o único autorizado a receber os ditos pagamentos.
c) Os funcionários da Polícia Federal procuram uma solução alternativa (esta etapa parece inócua, mas não é. Implica longuíssimos debates e vários testes).
d) Os ditos funcionários optam por uma solução e descobrem que ela não é exequível.
e) Repete c).
f) Os funcionários tentam outra solução e debatem-se com dois ou três funcionalidades do programa informático que usam.
g) (Até agora tenho usado funcionários no plural. Neste momento surge um caso grave - um mandato de prisão - e o funcionário sénior tem de abandonar o meu caso e tratar da prisão).
O funcionário júnior - em termos de posto, porque de idade é tão júnior como eu e mais velho do que o funcionário sénior - encontra um problema no dito programa. Espera aproximadamente dez minutos. Telefona ao outro para que o venha ajudar. O funcionário sénior aparece ao fim de cinco minutos - o problema da prisão ainda não estava resolvido mas estava a resolver-se -.Qual era o problema? "O sistema está a pedir uma morada, mas não aceita a morada do senhor em Lisboa". "Não faz mal, põe uma morada fictícia". "Mas eu tenho uma morada no Brasil, se quiserem", digo. Querem. Dou a morada em S. Luís. O sistema aceita.
h) O funcionário júnior não consegue imprimir o documento que o sistema finalmente produziu.
i) O funcionário sénior reaparece e consegue imprimir a GRU. Esta etapa leva aproximadamente vinte minutos. Sei porque fui comer (especial favor de júnior, porque em princípio não posso sair do gabinete onde me encontro), trocar dinheiro - outro espectáculo - e quando voltei eles tinham acabado de encontrar a solução. O documento ainda não estava impresso, mas estava em vias de.
j) Ir chamar o funcionário da TAP que entretanto, incompreensivelmente, se retirou. Presumo que para ir trabalhar.
k) Imprimir as duzentas e cinquenta cópias de todos os documentos envolvidos, desde o que tinha acabado de ser impresso até ao meu passaporte, agrafá-los, cortar o excesso de papel - júnior tentou primeiro com um objecto que não percebi bem qual era, depois com um cartão de crédito, depois e finalmente com uma régua. Só com este obteve resultados satisfatórios -.
l) Entregar-me todos os papéis e cópias. Ir carimbar o passaporte, coisa que só sénior pode fazer.
m) Despedidas efusivas, amigáveis, felizes, agradecimentos mútuos e promessas de que nunca mais deixarei tal coisa acontecer (não é difícil: sábado vou para os Estados Unidos e quando regressar não precisarei de noventa dias. Isto assumindo que o "sistema" mos concede, generosamente. Desta vez só tive direito a vinte e oito. Nenhum dos dois me soube ou quis explicar porquê).
Talvez o sistema aprecie os desafios que eu lhe coloco.
(Em Brasília, há quatro meses, o problema foi ligeiramente mais complexo: o novo GRU - não perguntem - tinha um código de barras válido, mas que não aceitava as transferências feitas por um desfile de funcionários com cartões de diferentes bancos. Até que um dos funcionários - não sei qual, estavam resguardados - teve a ideia de fazer a transferência por banca doméstica e funcionou).
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Ou seja: estou de novo no Brasil. Fui jantar ao Clube de Remo, um restaurante popular onde as caipirinhas são boas e baratas, as pessoas comunicam entre si a um nível sonoro nunca inferior a noventa decibéis, a música anda lá perto, o chão está tão peganhento que posso fazer exercício simplesmente tentando levantar os pés uma vez por minuto, o serviço péssimo em termos de qualidade e adorável como só os brasileiros sabem ser.
Estou de novo no Brasil. Tive de discutir com o chauffeur de táxi - ele ganhou, com uma mistura de argumento falacioso ("não tenho troco") e psicológico ("este gajo está demasiado cansado para se chatear por dez reais") -, voltei a pé para o hotel temendo ser assaltado (não fui) por passeios esburacados e ruas sujas, com cheiros alternadamente sublimes e nauseabundos.
E penso que a questão não é tanto gostar do Brasil ou não: é gostar da vida ou não. Descubro que sim, gosto.
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(10-11-2014)
Trocar dinheiro no Brasil também é uma operação complexa, que exige de uma das pessoas - são necessárias duas - que procede à troca dons de romancista, creio, tanto é o que escrevem num computador quando o turista sem cartão de débito ou crédito petende fazê-lo.
E isto qualquer que seja o montante. A única diferença no tempo que a operação leva é que provem da quantidade de algarismos.
Mas tem uma coisa mais simples do que a emissão de um GRU: só é necessária uma fotocópia. A do passaporte.
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O senhor Brito, que me vai apresentar um despachante despachado veio ver-me para se informar e me informar que me vem buscar ao meio-dia.Diz que não terei problemas para levantar as peças.
Pergunto-me quanto tempo será "não terei problemas".
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O dia está lindo, quente, os alísios cheios de força. As mangueiras que bordam as ruas ainda não têm mangas. O trânsito continua caótico, livre, excitante e perigoso. Os semáforos voltam a ser meros indicadores de probabilidades de se encontrar veículos vindos das outras direcções: quando estão verdes as probabilidades são mais baixas; encarnados, mais altas (isto aplica-se também, naturalmente, aos sinais das travessias de peões).
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