6.11.14

Diário de Bordos - Lisboa, 05-11-2014

Uma bicicleta é boa quando nos faz lamentar chegar ao destino, qualquer que tenha sido a distância ou o tempo que pedalámos para o atingir.

Desse ponto de vista a bicicleta Vitus Turbo* que hoje comprei é excelente. E linda, o que é um prémio. De longe a mais bonita de todas as bicicletas que tive até hoje.

Só a vou usar um dia: sexta-feira vou ao Porto e sábado regresso ao Brasil. A bicicleta será entregue para rentabilização amanhã e ficará em Lisboa à minha espera.

Mais um elástico que ponho nas costas e que me puxará para aqui cada vez que pensar em não voltar.

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Há uma diferença muito grande entre ser-se mal-educada e ser-se ordinária. É uma diferença importante: conheço gente ordinária muito educadinha, e, ao contrário, pessoas mal-educadas que são selectas.

A Rosa das Pintas - uma vendedora de flores do Mercado da Ribeira de quem já por aqui algumas vezes falei - fazia parte deste último grupo.

Só muito recentemente lhe soube a alcunha, proveniente das inúmeras sardas. A senhora era inimaginavelmente malcriada. Íamos à Ribeira beber cacau e comprar flores à Rosa - era a nossa vendedora preferida - e de lá saíamos aquecidos pela bebida e pelos chorrilhos de asneiras que ela proferia ao mais pequeno pretexto.

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Outra menção frequente: o prazer que sinto quando vejo um dos meus preconceitos - são tantos ou mais do que as sardas da Rosa - despedaçado, partido em mil estilhaços, exposto-lhes a falsidão e o erro.

E desta vez com fragor: a ideia de que em Portugal não se sabe dizer poesia (não falo de mim, claro; não sei dizer em lado nenhum) foi destruída pela voz poderosa, versátil e sensível do André Gago.

Ouvi-a pela primeira vez nos Poetas do Povo, mas soube a pouco. Esta semana ouvi-a de novo e muito mais nas Primas Terças do Bela Vinhos e Petiscos (que afinal fica em Alfama e não em Sintra, como eu misteriosamente pensava).

O André estava acompanhado por um guitarrista chamado Vasco Duarte Abranches. Chamar-lhe guitarrista é insuficiente - ele está muito mais perto do génio do que do instrumento - e Vasco uma ilusão: naquela noite parecia que Alberto Caeiro ele-mesmo estava a tocar ali sentado enquanto o André lhe dizia os poemas.

Mais uma noite maravilhosa, mais um elástico para a colecção.

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"Eu cá sou de antes quebrar do que torcer", dizia o senhor que me engraxava os sapatos no Rossio aqui há uns dias.

Isto vinha no decorrer de uma conversa cujo teor completo não recordo, infelizmente. Devia ter-me levantado e corrido para o Gelo escrevê-la, mas enfim. A verdade é que estes diários não se querem uma compilação rigorosa e milimétrica dos dias.

Antes quebrar do que torcer. Engraxar sapatos no Rossio.

A resposta é sim.

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Quase a ir-me embora lembro-me de algo que pensei há muito: as únicas partidas são as dolorosas. Uma partida sem dor é uma viagem. Ou melhor: um passeio.

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Por razões estéticas e práticas evito usar a Gare do Oriente. Poucos sítios haverá em que a dicotomia entre a função e a forma seja tão profunda, tão evidente (e tão bonita, mas isso é outro debate).

Aquilo não devia ser uma estação de comboios - e terminal, meu Deus -. Quando muito, um cenário para filmes de horror futuristas, campo de batalha para adolescentes desordeiros e bêbedos, armadilha para extra-terrestres que querem passar despercebidos e para isso vão apanhar o comboio. Seriam provavelmente os únicos que compreenderiam aquele estúpido desperdício de espaço, aquela ausência de luz, o eco cavernoso e triste, o vento (sim, há sítios em que o vento é desagradável).

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A maioria das ideias e projectos que tinha quando cheguei a Lisboa estão a avançar. Nem todos chegarão ao fim, claro. Mas o facto simples e irrevogável de já não estarem num parque de estacionamento mental fez desta estadia a melhor em muito tempo. Parece que a ampulheta se virou, finalmente.

* - Isto precisa de ser clarificado. O quadro da bicicleta é Vitus. O resto vem de um molhe de coisas que  RCycla recicla, como por feliz coincidência o nome da loja / oficina indica.

Aconselho-a fortemente. Fica na 24 de Julho, ao lado de  um restaurante chamado Beira-Rio.

O qual é melhor tasca de Lisboa,  arredores e similares.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.