I
Ontem fui almoçar com Maude e o namorado. Maude é a minha mulher. Somos casados há dezasseis anos. O rapaz é bastante mais novo do que nós. Ela tem quarenta e três e eu mais dois. Ele deve ter vinte e poucos. É pintor e expõe as obras no metro. Aparentemente foi assim que se conheceram. Maude sempre gostou de arte e de artistas. Ignoro o que a levou a casar-se com um piloto de aviões.
Gostei do rapaz. Tem o olhar mortiço e profundo dos criadores que criam e fala igualmente devagar, como se cada frase fosse um marco na sabedoria da humanidade e devesse ficar registada. Chama-se Jules, ou Julien, não me lembro bem. Tenho uma péssima memória para nomes. Talvez seja desinteresse, no fundo. Ou arrogância. Não sei.
Fomos almoçar a uma daquelas esplanadas do Campo Pequeno. Maude levava os óculos escuros redondos, que lhe cobrem metade da face e a tornam parecida com Janis Joplin. O rapaz ia com o uniforme de artista. Falou pouco. Eu estava com a farda de voo – tinha acabado de chegar e achei pena trocar de roupa. Assim sempre dei ao miúdo mais uma razão para se rir de mim. Os artistas não gostam de fardas. Excepto as deles, claro, mas este ainda é demasiado jovem para saber que está fardado. Pensa que está vestido–. Ele não sabe que eu sei. Maude sabe, porque Maude sabe tudo o que eu sei. Nunca falamos nos seus amantes. Nem nas minhas, mas são muito menos do que os dela, penso. Não os conheço todos. Desta vez aceitei ir almoçar porque Maude comprou uma ou duas telas ao rapaz e queria que eu o conhecesse. Também conheci o músico e o actor. Imagino que tenha havido mais, mas não os encontrei. O músico era simpático. Tocava bem – no metro, claro –. Talvez tivesse sido melhor comprar um carro à Maude antes de me aparecer com a fauna toda dos túneis em casa.
Há muito tempo que o amor entre Maude e mim foi substituído por uma amizade profunda, sexuada, cheia de prazer e vazia de paixão. A única condição é eu não saber. É-me indiferente que toda a gente saiba desde que ninguém me possa vir dizer que fui enganado.
O almoço foi agradável. O rapaz é frugal, Maude estava radiante e eu aproveitei para falar do clima, um tema que me aborrece mais do que as horas de sono da minha primeira empregada. Jules - ou Julien? – é culto, tem conversa (se bem um pouco lenta para o meu gosto) e não estava nem demasiado à vontade nem encavacado. Enquanto falávamos pensava que o rapaz me devia estar grato: dava-lhe uma mulher soberba e algumas razões para pensar que fazia bem em enganar-me com ela.
"Sabe estar, não achas?" resumiu Maude depois do almoço, já a caminho de casa.
........
Maude está sentada na borda da cama, pernas encolhidas, mamas esmagadas contra os joelhos. Pinta as unhas dos pés.
Quando acabar vai deitar-se de costas, coxas afastadas, pés em leque perfeito, simétricos, a arejar. Com a mão direita começará a masturbar-se. A mão esquerda ficará pousada no lençol, entre nós. Pouco a pouco vai suspirar; os suspiros aumentarão de intensidade; eu deixarei o livro que estou a ler e voltar-me-ei. Ela pegar-me-á na mão direita, pô-la-á no seu ventre e dir-me-á "Põe a foice em seara alheia", ou coisa que o valha. Maude consegue erotizar a mais anódina das expressões.
Em breve as nossas mãos estarão juntas; a sua mão esquerda estará algures no meu ventre. Eu continuarei deitado de costas; Maude esmagará a minha mão contra o seu monte-de-vénus, redondo e proeminente, de pentelheira farta. Começarei a entesar-me.
……
Está deitado de costas, pau feito a apontar para o tecto, quase vertical. Sento-me em cima dele, puxo-lhe a pila para a frente e enterro-a em mim. Aponto para o meu umbigo e digo-lhe Até aqui. Até aqui. Até aqui. Ponho as pernas por cima do peito dele. Gosto quando ele me mordisca os dedos dos pés enquanto o sinto no meu ventre. Até aqui. Já me vim uma vez. Vir-me-ei uma segunda e outra e outra.
Ele pega-me nos tornozelos, afasta-me ligeiramente as pernas, puxa-me para a frente e para trás. Sinto-lhe os tomates nas nádegas. Sei que isso o magoa um pouco e que ele conta com essa dor para atrasar o orgasmo.
Gosto de saber que ele me olha para a pentelheira, que vê o membro enterrado em mim até aos copos, que me vê feliz como se fosse a primeira vez. Não é. É melhor.
Diz-me "Ajuda o senhor Bispo" e eu obedeço. Com a mão direita masturbo-me de novo. Com a esquerda acaricio-me os seios. Viramo-nos de lado.
Ele gosta de acabar assim, os meus tornozelos nas mãos fechadas, para trás e para a frente e para trás e para a frente não cada vez mais depressa mas cada vez mais fundo, cada vez mais fundo, cada vez mais até aqui.
Sai depressa de mim. Não é como Jules, que gosta de se deixar ficar e de o tirar quando já está mole.
Amo-o, mas ele não sabe. Pensa que sinto por ele o que ele sente por mim: amizade.
Não é verdade. Amo-o.
II
Já alguma se apaixonaram por alguém que à partida não tem nada em comum convosco? Nada em comum com vocês ou aquilo que procuram no outro? Foi isso que me aconteceu com ele. Sempre gostei de artistas, de uma vida desorganizada, sem outras expectativas que não fossem criar, gozar, aprender, conhecer "pessoas interessantes" (as aspas são consequência destes dezasseis anos com ele, claro. O seu cepticismo contaminou-me. "Pessoas interessantes só existem nas cabeças de pessoas que as têm vazias. Toda a gente é interessante", dizia-me). Queria um homem ao meu lado sempre. Pensava que as minhas ideias se transformariam milagrosamente em livros, contos, letras de canções, pinturas, fotografias; sem trabalho, sem esforço, por obra e graça da inspiração e do talento.
Conheci-o num jantar. Era um jovem piloto com um sentido de humor demolidor, que defendia sozinho as suas ideias contra todos os presentes, educadamente, com um sorriso e uma resposta lapidar àquilo que visivelmente lhe parecia uma antologia de tonterias.
Não me lembro qual o tema de discussão desse primeiro jantar. A cena repetiu-se várias vezes, até ele se cansar e não falar se não do tempo e de aviões – duas coisas que, dizia, o apaixonavam. "Principalmente o tempo, a sua constante mudança, a sua imprevisibilidade" –.
Foi contra vontade que me apaixonei por ele. Era um homem decente, provavelmente o mais decente que jamais conheci. "Decente? Pior do que isso só ser cornudo", disse-me um dia. "Pensava que ser cornudo te deixava indiferente". "Deixa. É isso: não há nada pior do que ser decente".
Mas sim, era um homem decente. Oferecia-me flores, trazia-me constantemente prendas – joalharia, roupa – das suas viagens, amava-me maravilhosamente e, sobretudo, nunca me fazia perguntas. Um dia fiz-lho notar. "O que quiseres que eu saiba dizes; o que não quiseres eu invento", respondeu.
Demorei muito tempo a habituar-me a essa liberdade. Nos primeiros anos da nossa vida comum – vivemos três anos juntos, antes de nos casarmos – só pensava em deixá-lo. E casei-me cheia de dúvidas. Nunca o tinha enganado, se bem enganar não seja o termo adequado.
Um dia falámos no tema. Oh, muito por alto e indirectamente, de raspão, como se não fosse nada com ele, ou comigo. Nessa altura estávamos casados havia dois anos, se tanto. Mas tínhamos passado por muitas coisas juntos: uma separação curta e dolorosa para os dois, uma gravidez falhada para mim – que de resto me fez saber que nunca poderia vir a ter filhos e podia deixar a pílula – a morte da minha mãe, um acidente em que ele esteve envolvido e no qual poderia ter morrido.
É demasiado, para cinco anos de vida comum. Não precisava de um marido a dizer-me que podia fazer o que quisesse, desde que ele não soubesse. Um marido que naquele dia eu amava um pouco mais do que alguns anos antes; um marido ao qual pouco a pouco, devagar, me tinha habituado; que eu nunca tinha enganado. Porque viria ele agora com essa conversa, a propósito de um filme, ou de um livro, ou de uma coscuvilhice, não me lembro? Mas aquilo não foi bem uma conversa. Foi mais uma informação, como se estivéssemos numa estação de comboios e um altifalante dissesse que o próximo comboio ia chegar atrasado.
Não me lembro do que lhe respondi.
A primeira vez que tive um caso foi uns largos meses depois. O meu marido – já conseguia usar esta expressão sem sentir um arrepio – estava fora, num voo para o Brasil. Encontrei António numa festa. Escrevia, tinha muita graça, não tinha um chavo, e era péssimo na cama. Repararam que disse "tive um caso". Com António descobri que não estava a enganar o homem que, sim, amava. Informações só superficialmente contraditórias. E com as quais vivo desde então.
Aprendera, finalmente, aquilo que o meu marido me dizia havia anos: não se deve misturar o amor com mais nada. Como a água, que se pode misturar com tudo mas é melhor quando é pura.
António era brusco na cama, vinha-se depressa, parecia que está a fazer amor sozinho. Pouco me importa: não é por falta de bom sexo que fodia com ele. Era por não me faltar nada.
III
Um gajo pode ser bom naturalmente, por obra e graça da natureza, por ser anjinho; ou porque já foi mau: fez demasiadas asneiras, demasiados erros, maldades e aprendeu. Estou longe de ser o gajo decente que todos pensam que sou. No qual me transformei depois de ter feito muita merda. Não posso dizer que tenha sido de propósito. Não foi. Comecei simplesmente a empatizar com os outros, a perceber que as minhas acções tinham consequências, a sofrer demasiadas vezes as maldades de que ia sendo vítima. Pouco a pouco – o processo foi gradual, lento, por vezes imperceptível – transformei-me num "homem bom" (aspas porque repito o que milhares de vezes me disseram. Tu és um homem bom. You are a good man.Eres un hombre bueno. Tu es un chic tipe. Disseram-mo em todo o lado, em todas as línguas). Ando há cinco anos com Isabel. Ao princípio era suposto ser uma dessas relações “picada de mosca”, insensível, sem consequências, um banal affaire entre um piloto e uma hospedeira: queca em Nova Iorque, passeio no Rio, compras em S. Francisco. Mas um dia pedi para voar de chave com ela (significa fazer sistematicamente voos em conjunto com outro tripulante) e desde aí perdi o controlo. Passo mais tempo com Isabel do que com Maude. Penso nela mais vezes, toco-lhe e falo-lhe e rio-me com ela mais do que o faço com Maude. Se alguém me convida para um jantar e diz "Traga a sua mulher" é em Isabel que penso, não em Maude.
Maude... Quando penso no que este nome me fez sonhar e no pesadelo que hoje se tornou. Odeio tudo o que ele evoca para mim, a começar na minha cobardia, a continuar pela minha duplicidade, a acabar nas memórias que tenho dos tempos em que a amava.
Como cheguei aqui? Como posso não amar a pessoa que tanto amei? Como posso mentir-lhe? Não é como. É porque. Como eu sei. Porque não.
IV.
O vento predominante na costa portuguesa durante o verão é o norte.
A leste de Portugal o centro da Península Ibérica é seco, pouco arborizado. A terra aquece e com ela o ar. Este como tudo o que é quente sobe e a pressão atmosférica baixa. É assim que começam todas as depressões térmicas: ar quente a subir. A oeste está o anticiclone dos Açores. É provocado por ar frio que vem do Norte e desce porque está mais frio do que o ar que o rodeia.
Em torno de um anticiclone o ar gira no sentido dos ponteiros de relógio. Em torno de uma depressão gira no sentido oposto.
Portugal fica exactamente no ponto de encontro destes dois fluxos de ar opostos, antagónicos. É por isso que temos a Nortada em Portugal, e que à noite ela cai e durante o dia vai refrescando.
V
“Lisboa, 04-12-20…"
Meu querido,
Desculpa começar assim.
A Isabel morreu hoje, num acidente de automóvel. E eu vou deixar-te. Não me atirarei, como ela, da estrada abaixo nessa serra de Sintra da qual, disse-me ela – um pouco inutilmente – vocês tanto gostavam.
Hoje bateu-me à porta eram onze da manhã. Fui abrir. Estava muito calma, sorridente, mas não sabia como começar. Visivelmente não tinha pensado bem o que dizer.
– Bom dia. Chamo-me Isabel. Sou a… a… a… Tinha uma relação com o seu marido.
– Tinha? Já não tem? Entre.
– Tenho… Isto é, não tenho… Não sei. Gostava de ir almoçar consigo, se não se importa.
– Não me importo nada, mas não quer beber qualquer coisa? Ainda é cedo para almoçarmos.
– …
– Entre, Isabel. Há anos que sei que ele não me é fiel. Eu tão pouco, de resto. Mas até aqui tenho sido eu a apresentar-lhe os meus amantes. Ele nunca me apresentou nenhuma das suas… relações. – Fiz uma pausa antes de relações. Perdoar-me-ás, espero.
– Obrigado.
Ela bebeu um copo de vinho branco e eu um café. Antes de nos separarmos – disse-me que me levaria no seu carro, mas depois teria de vir de comboio porque tinha um compromisso logo ao princípio da tarde – pediu-me o número de telefone, para o caso de ser preciso. Dei-lho, ela ligou-me, eu respondi. Ficámos com os números uma da outra. Combinámos encontrar-nos à uma e meia num restaurante de Colares.
Está – estava, desculpa – contigo há cinco anos. Sentia-se muito ridícula por precisar de me contar estas coisas todas. Não lhe disse que não precisava de me contar nada. Visivelmente não tinha preparado um discurso. Quando cheguei ao restaurante ela já lá estava. Comemos um ensopado de borrego a meias. Pensei que se lá estivesses seria o que pedirias também. Estavas, claro.
Falou-me dela, só dela; ou quase só. Da sua infância difícil, de não acreditar que a relação contigo fosse durar, de quão culpada se sentia por te amar quando sabia que tinhas uma mulher “maravilhosa” (cito-a, como sabes). De não aguentar mais “esse amor”.
– Compreendo-a, Isabel. Ele é um homem decente, não é?
– É. O homem mais decente que já conheci.
– Vocè sabe que ele detesta que digam isso?
– Sei. Diz que ser decente não vale o esforço que custa. Que é uma patetice.
O ensopado estava excelente. Imaginava-te à mesa – não, via-te –. Antes de combinarmos o restaurante em Colares sugeri-lhe a esplanada do Jardim da Estrela, mas ela disse que tinha o tal compromisso e queria estar à vontade com o tempo.
Parece estúpido dizer isto agora, nestas circunstâncias, mas o almoço foi bom. Ela era adorável, bonita, inteligente (sei que preferirias a ordem inversa). Lutou muito, “contra tudo, todos e sobretudo eu própria” para conseguir ter uma vida “normal”. Entre a vida “normal” e a vida dela estava eu, claro. “Ainda bem que trouxe o meu carro”, pensei. Uma injustiça que agora lamento.
Não sofrerei tanto como tu com esta morte. Mas sofro bastante. “A vida não nos pertence inteira”, disseste-me tantas vezes. Exprimia-se bem, claramente, com lógica e sequência, sorrindo como se tudo aquilo fosse uma brincadeira, uma ilusão, a história de uma amiga que conhecera vagamente.
Voltei para casa. Ela calculou bem o timing: a policía ligou-me menos de uma hora depois de eu chegar. O meu número era o único que estava no seu telefone, que ela tinha tido o cuidado de pôr numa caixa, bem protegido, para resistir à queda do carro. Imagino que tenha sido a única parte que ela estudou antes. Não tinha documentos nenhuns com ela.
Desculpa-me por favor deixar-te nestas circunstâncias. Não posso fazer nada. Sabes que te amei, que te estou grata por estes anos todos de prazer e felicidade e amor que me deste. É infantil, dirás, fazer sofrer quem nos ama. É. Mas só os adultos conseguem fazer sofrer quem gosta de nós porque gosta de nós. Estou-te grata por me teres ensinado o que é ser livre. Por teres feito de mim a mulher livre que hoje sou. A aprendizagem foi difícil. Penso – ou será espero? – que em breve encontrarás uma outra Isabel, uma outra Maude.
Com afecto, ternura, apego, carinho,
Um abraço da
Maude”
VI
Relembro esta história numa ilha do Oeste do Canadá, onde vivo com Maweral, uma jovem Filipina que encontrei num porto qualquer dos Estados Unidos. Maweral cozinha, lava a roupa, limpa a casa e faz amor com devoção e silêncio. Tenho um barco chamado HADES. Quando chegou Maweral não sabia o significado. Um dia perguntou-me e eu respondi-lhe “Nada de especial. É um rio que todos temos à porta”. Pouco tempo depois de chegarmos à ilha disse-me “Sei o que é Hades”. Olhei-a surpreso – pouco falávamos para além das coisas práticas do dia a dia –. Estava a fazer o almoço. Muito pequenina, com cabelos pretos como o mar numa noite sem lua e sem vento. Ensinei-lhe português, que ela fala baixo, lentamente. “Lembra-te: a tua vida não te pertence inteira”.
St. Martin, 23-12-2014
Para a T. com afecto, ternura, apego, carinho e amizade,
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