6.3.15

Diário de Bordos - Jacksonville, Florida, Estados Unidos, 06-03-2015

É pântano, é delta, é água por todo o lado e terra em tudo quanto é água. É uma luz fascinante, vem de baixo, reflectida e filtrada pela água. Quando não se vêem a água ou a terra vêem-se árvores e mais árvores, separadas apenas pela ténue linha de alcatrão na qual nos deslocamos, silenciosamente (o silêncio é como a pele desta paisagem e a música desliza por ele e não fica).

É desta paisagem que me despeço. Cada vez me dou pior com a incompetência e ela comigo.

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Peço uma cerveja no detestável restaurante ao qual vim jantar. A jovem empregada, vestida como se trabalhasse num prostíbulo (é o uniforme, estão todas assim) pede-me a identificação. Pergunto-lhe se está a brincar comigo, diz que não e aponta para um badge que tem ao peito.

Não o vi, mas parece que é norma obrigatória da casa. Tal como as mamas,  suponho. Estão todas numa letra bastante avançada do alfabeto.

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Apanhei uma mocada. Literalmente: fui ao Museum of Contemporary Art, acronimamente MOCA. Não é grande coisa, mas descobri uns retratos de Picasso que não conhecia – “Retratos Imaginários”, feitos aos oitenta e muitos anos em cartão de embalagem, uma criatividade e força e alegria de fazer inveja a muitos artistas sessenta anos mais novos -; uma senhora chamada Tara Donovan, que faz esculturas com palhinhas – sim, palhinhas daquelas que os Americanos põem em tudo quanto é copo – e consegue não ser ser circense. Coisa que não está, infelizmente, ao alcance da maioria dos artistas contemporàneos. Descobri ainda um fotógrafo chamado Paul Graham, um inglês da minha idade que consegue fazer fotografia a partir de fotografia documentária, coisa que é mais difícil do que encontrar um bom vinho do Porto a preços decentes nos Estados Unidos.

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E acabou exactamente agora de me acontecer. A simpática recepcionista do museu aconselhou-me um restaurante. É visivelmente uma coisa da moda onde se come muitíssimo bem e – oh milagre – cujo vinho a copo mais barato é um Warres LBV de 2003. Cinco dólares. É difícil de acreditar, mas é verdade.

Isto é indescriptível, tanto mais que os ovos da entrada (“Deviled Eggs” e a sopa de tomate “Candy Apple Bisque”) estavam ao nível do LBV: saborosos, subtis, complexos e ligeiramente adstringentes.

O almoço vai custar-me uma fortuna. Normal, para um tesouro.

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A sopa de tomate da casa leva Madeira e Boursin.

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Este país limita a velocidade mas não a venda de armas. E avisa as pessoas de que as chávenas de café estão quentes ou, como hoje ouvi, que o comboio está em movimento, não vão elas pensar que estão na CP e o comboio está em greve (o anúncio continua com “agarrem-se, por favor”.  Estas preocupações com a infantilidade das pessoas e com a sua incapacidade para tratar de si próprias não se aplica, claro, às armas).

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Jacksonville é um destino turístico desde 1840, dizem os painéis informativos na margem do rio. O qual já teve mais tráfico de passageiros do que – imagine-se – o Mississipi, continuam.

Não sei. Cada vez que penso que não poderia nunca viver nos Estados Unidos acontecem-me coisas destas. Vou a um museu confirmar a minha ignorância em arte moderna, almoço num restaurante que poderia estar em Paris e descubro uma livraria cum café chamada Chamblin's Bookmine que só por si mereceria uma visita à cidade (não sei se existe desde 1840, não visitei o site. No que me respeita, existe desde e para sempre).

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Não pago impostos mas compro livros e discos numa livraria e bebo Warres LBV num restaurante que decerto os pagam.

Se não pagassem beberia decerto mais vinho e compraria mais discos e livros, mas isso é outra história. Ou lamentos de outro muro.

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E para terminar este dia reconciliador fui passear no Jacksonville Water Taxi. A história é americana, cem por cento: pergunto ao capitão do bote (um cata de quarenta pés com dois fora-de-borda de 150 cavalos cada e capacidade para talvez trinta pessoas) a que horas larga. Responde-me com o amis amplo e bonito e aberto sorriso do mundo "assim que o meu tripulante chegar".

Expliquei-lhe que queria ir ver uma marina, entretanto o tripulante ("mate") chegou, explicou-me que esperariam por mim e de repente apercebi-me de que teria o barco por minha conta. Não desembarcquei em nenhuma das marinas (há très, todas vazias) mas dei a volta toda, à conversa com o mate.

O dia está cinzento, chuvoso e frio. Mas a cidade é tão bonita, vista do rio.

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E o embarcadouro é ao lado do pub onde ontem bebi um Tullamore Dew e hoje bebo Smithwicks à pressão, a mãe de todas as cervejas.

(Suponho que seja por causa da Smithwicks que a Heineken afirma ser "provavelmente a melhor cerveja do mundo". Não quer cair no rídiculo de alguém mencionar a Smithwicks),

Que ela não diz nada, claro. Não precisa. Basta-lhe existir para ocupar os três primeiros lugares do pódio mundial de cervejas.

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