Não vale sequer a pena falar da música, é como um gajo ir para Marte e queixar-se do frio ou da falta de oxigénio; nem das televisões: idem.
De resto o lugar é indubitavelmente agradável. Chama-se Dos Gatos. Escuro ma non troppo, decoração ecléctica mas equilibrada (tijolos rústicos, tecido urbano, iluminação cuidada), bom ambiente (isto é, as miúdas são giras). Até a música seria bem escolhida, se estivesse mais baixo.
Agora está a passar uma de que o Pedro gostava e passava muitas vezes, quando trabalhávamos no Marchand de Sable. A maioria dos clientes do Dos Gatos ou não era nascida ou era jovem nessa altura. O Pedro escolheu morrer como vivia e isso chateia-me e a verdade é que ainda penso nele muitas vezes, trinta anos depois oiço a porra da música (não me lembro do nome, creio que é de um grupo chamado Van Halen mas não tenho a certeza) e catrapumba, lá me vem o Pedro e a última vez que o vi, num restaurante chamado Castafiore, na Parede; e as vezes todas que os vi antes dessa, os copos e as farras que fizemos juntos.
A loja do teu Pai agora é um banco, Pedro, mas isso já tu o sabes de certeza, tinhas uma irmã e um irmão, não era? Não me lembro dos nomes deles. Só me lembro de ti e da tua estúpida morte e da tua estúpida vida e de quanto gostávamos de ti, a S. e eu. O Dos Gatos é como o bar do Marchand, ficas pelo menos a sabê-lo. Maior e adaptado aos tempos, mas é o mesmo.
Se um dia tiver um bar chamar-lhe-ei Buñuel, não terá música (ou excepcionalmente, baixinha, quase em surdina; ainda mais excepcionalmente ao vivo - um violino, um sax, uma harpa, uma flauta -. Música para ouvir). E terá um limite de idade. Inferior, claro. Talvez lhe chame Cresca e Apareça. (O Pedro nunca cresceu, mas seria admitido, se aparecesse, os caracóis negros revoltos e violentos, sorriso escancarado, histórias de mulheres e milhares de histórias).
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O caso é semelhante ao do Maistre quando saiu da prisão: queria ir para casa mas os seus passos levaram-no para casa de uma Madame cujo nome não recordo. Eu fui à Western Union buscar dinheiro e queria ir para casa mas os meus pés, tal magnetos dirigidos por um íman inelutável levaram-me ao Candy Apple e respectivo Warres 2003 LBV de novo.
De lá ao Dos Gatos foi um salto e não precisei de íman nenhum.
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Mas isto foi ontem. Hoje fabriquei um dia estúpido como só eu sei fazê-los. Queria ir a St. Augustine e acabei num restaurante libanês de Jacksonville a beber arak e a comer hummus e a ouvir xaropadas - com excepção dos dois Leonard Cohen que passaram, isto deve estar num daqueles programas de mistura profunda, salta de Marianne para Júlio Iglésias (suponho. Era em espanhol) -.
O arak é mais barato do que o vinho. Há coisas cuja lógica me escapa completamente.
Vou gastar mais dinheiro do que queria, claro. Mas pelo menos posso voltar a pé para o hotel, uma espelunca que tem a vantagem de estar perto do centro.
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"Nomadiser reste l'apanage des plus forts parmi les sédentaires. Et la puissance appartient toujours à ceux qui circulent pour vendre ou conquérir, négociants ou guerriers, marins en tous cas."
Jacques Attali, in Chemins de Sagesse. Traité du Labyrinthe. Ed. Fayard, Paris.
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"I spent most of my dough on booze, broads and boats and the rest I wasted."
Elmore Leonard
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Ontem fui dar um passeio à beira-rio. Arranjadinho, bonito, chato. Nem a nortada gélida conseguia devolver um bocadinho de vida àquilo.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.