31.3.15

Diário de Bordos - S. Paulo, S. Paulo, Brasil, 31-03-2015

O voo de Miami para S. Paulo dura sete horas e meia, das quais quatro passadas a sobrevoar território brasileiro.

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O Besson foi uma escolha errada: li-o em menos de um dia.

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"Shipowner's incurable optimist". A expressão vem de um artigo do Economist sobre o preço dos fretes do granel sólido.

É um optimismo que conheço muito bem. Tal como não se deve pedir a um "optimista incurável" que seja por exemplo gestor de empresas, ou agente de seguros, não se pode ser armador - seja qual for o tamanho do bote - e pessimista. Ou marinheiro.

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Tenho uma casa com uma namorada dentro. Já não posso passar a tarde num café e beber a vida enquanto ela desfila à minha frente.

Não fico a tarde mas fico um bocadinho dela. O suficiente para ver as ruas arborizadas do bairro onde estou, ladeadas por casas de um piso ou dois do meio das quais irrompe por vezes um prédio com quinze ou vinte; as abomináveis cadeiras e mesas de plástico encarnado, publicidade a uma marca de cerveja. São assim em todo o lado, a cor deve ir bem com o amarelo da cerveja; os passeios largos, de cimento, muito mais limpos do que os de Salvador ou S. Luís; a senhora alcoólica a quem o empregado do boteco não serve álcool, mas permite que fique sentada à mesa. "Se ela bebe depois fica por aí caída e não é bom nem para o comércio nem para a senhora", explica-me o empregado.

Ao contrário de muita gente - incluindo brasileiros - aquilo de que mais gosto no Brasil é das pessoas.

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Ainda não vi S. Paulo: vi a Livraria Cultura, a Avenida Paulista, o bairro onde vivo; e ontem dei um longo passeio a pé até ao centro comercial onde fui trocar dinheiro e, numa rua ao lado, beber caipirinhas. A livraria tem uma secção bastante decente de livros franceses, e nela estava o Livre des Fuites, de le Clézio. Hesitei em comprá-lo. Não conseguirei deixá-lo em lado nenhum.Mas ainda só o li duas vezes ou três e... enfim, não sei.

«Laure, c’est ici, j’ai trouvé. Je crois que je ne fuirai plus jamais. J’ai semé mes ennemis, définitivement. Al Capone, Custer, Mangin, Mac Namara, Attila, Pizarro, De Soto, Bonaparte, tu sais, tous mes ennemis. Et puis Chevrolet, Panhard, Ford, Alfa Roméo. Tous ceux qui voulaient ma peau. Ils ont perdu ma trace, je crois. C’est un miracle. Et le général Beau, le colonel Bon, le maréchal Vrai. L’amiral Mal. Le chef de bataillon Dieu, le capitaine Satan. Tous, qui me traquaient. Avec leurs uniformes. Avec leurs sabres. Tous mes ennemis à lunettes noires, avec leurs cravates à raies e leurs cheveux peignés. Et les femmes Rimmel, Mascarat, Jarretelles. Celles qui me guettaient du fond des pages glacées de magazines, avec leurs corps aiguisés, avec leurs seins, avec leurs jambes en forme de lances. Celles qui avaient des yeux d’acier, des cils noirs, et des lèvres couleur de corail. Elles qui me tendaient leurs pièges méprisants, et qui riaient de me voir trébucher. Les femmes Amour, les femmes Douce, Belle. Jamais elles ne viendront jusqu’ici. Leurs yeux ne supporteraient pas la lumière intense qui explose partout. Leurs oreilles ne supporteraient pas le silence. Leurs cheveux d’or ne supporteraient pas la poussière. Je suis libre, presque libre.
...
»

"Je voudrais que plus rien ne soit différent de moi, qu'il n'y ait plus jamais d'éloignement".

"Ceux qui sont immobiles sur la terre errante: les voyageurs.
Ceux qui fuient sur la terre immobile: les sédentaires.
Mais ceux qui fuient sur la terre errante, et ceux qui sont immobiles sur la terre immobile: comment les appeler?
"

J.M.G. Le Clézio, in Le Livre des Fuites, ed. Gallimard

(Ceux qui fuient sur la terre errante: je propose de les appeler "marins").

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Fui ver um espectáculo de Z., o irmão de L., músico bastante conhecido no Brasil (e em Portugal, de resto). Tenho sorte: não preciso de mentir para dizer que gostei da música dele. (E da cozinha, e da pessoa e da família).

Tenho sorte.

S. Paulo vai juntar-se à lista das minhas terras: Lisboa, Genève, Mértola, Marigot (enfim, St. Martin  toda), Palma de Mallorca.

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"Não és homem para te agarrar a uma mulher". diz-me uma senhora que me conhece bem, demasiado bem.

Sou, minha querida. Sou. Sobretudo se essa mulher vier com uma vida, uma cidade, um futuro. E puser ordem nos meus passados.

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Dia 14 regresso a Bocas del Toro, a caminho de Gibraltar. Vou levar um ketch de 57'.

Tenho sorte.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.