17.3.15

Relatório intermédio

As viagens começam mas não acabam, digo-o muitas vezes. Mas talvez isso seja só no princípio, talvez depois deixem também de começar e se fundam todas numa só, numa espécie de magma de viagens que se entrelaçam, bifurcam, reatam e recomeçam numa cadeia sem fim.

Estou nas Bahamas, num café de Freeport ao qual cheguei pouco passava da uma da tarde e onde ficarei até à meia noite, porque uma hora depois apanho o barco-correio para Nassau. Daí, logo a seguir, vou noutro barco-correio para Black Point, onde chegarei às duas ou três da manhã.

Estou a adiantar-me, a andar  para a frente. É preciso andar para trás, fingir que este é o fim da viagem e reconstituí-la. Hoje é segunda-feira. Dez e dez da noite. Acordei às cinco da manhã em Fort Lauderdale, fui de autocarro até ao terminal do ferry. Comprei o bilhete - obrigaram-me a comprar uma ida e volta, apesar de ter um e-mail a dizer que ia embarcar num veleiro, filhos da puta (ou filha, era uma senhora) -. A caminho do ferry vieram ter comigo duas miúdas novas, pedir-me informações. Disse-lhes que também ia para lá. Vieram comigo. Fizemos a viagem juntos. Eram simpáticas, inteligentes, bonitas. Nada a ver com a escumalha do spring break que às sete da manhã comprava garrafas de cava (o ferry é da Balearia) e às nove mal se tinha de pé.

O tempo passou bem, depressa. As miúdas conversaram, eram educadas; e depois dormiram a viagem toda: tinham passado a noite a viajar de carro.

Cheguei ao hotel Deauville às seis da tarde de domingo, vindo de Marathon. Passei o domingo todo a viajar, a saltar de autocarro para autocarro para comboio para monorail e para mais três ou quatro autocarros. Tudo isto com peso a mais: tenho a mochila verde carregada de livros que não mandei para Lisboa por ser demasiado caro e não deitei fora por não ser capaz.

Em Marathon dormi numa tipografia, numa daquelas camas de campanha dobráveis que tresandava a cão. O dono da empresa, D. é amigo dos animais e fala com e dos cães como se fossem pessoas. Dormui bem, apesar do cheiro, profundamente e de uma vez só.

Dormi naquela tipografia, entre uma máquina antiga e umas estantes ainda mais velhas porque no autocarro - o último de toda aquela cadeia de transportes entre Fort Lauderdale e Marathon - encontrei uma senhora cujo marido está na prisão nas Bahamas por ter excedido o tempo de permanência no país. Queria, mais do que justificadamente, tirar o barco de lá e levá-lo para Haiti para fazer reparações na previsão de ele ser arrestado. Como de resto foi, hoje de manhã. Nem a senhora nem o marido têm dinheiro. Acabámos por acordar que eu lhes levaria o bote para Cuba gratuitamente (excepto os transportes e as dormidas, porque isso eles teriam que pagar de qualquer maneira).

Entretanto, já no ferry (salto para a frente) fiquei a saber que o barco tinha sido arrestado e que o marido da senhora arriscava uma pena de prisão de dois anos na prisão a sério do país, não na da esquadra onde agora se encontra.

Além disso tem de pagar uma multa de dois mil dólares, dinheiro que não tem, nem ele nem a mulher.

A senhora está compreensivelmente desesperada, e o senhor também (sei através dela, nunca falei com o homem nem nunca o vi). Diz-me que é melhor abortar a missão e voltar para trás, porque está aflita a tentar encontrar o dinheiro para a multa e porque o barco vai ser arrestado e porque não sabe o que há-de fazer (isto não me disse. É alemã. Tive de ser eu a deduzi-lo. Não foi um esforço muito grande).

Digo-lhe que não, que tenha calma. De qualquer forma em Fort Lauderdale está tudo cheio. E talvez com um pouco de jeito se consiga tirar daqui o barco, e o marido. O qual sofreu um acidente qualquer cerebral quando era miúdo e se bem não seja atrasado mental ficou com sequelas e não sabe lidar bem com algunas circunstâncias.

Quando cheguei a Freeport não sabia se ia dormir aqui, seguir amanhã de barco-correio para Nassau e na quarta-feira para Georgetown, onde o armador está detido; ou se ia para Black Point no barco correio da uma da manhã.

Passei a tarde toda num café a falar com a senhora por Facebook (e ainda há quem diga mal daquilo), até que às cinco da tarde tomámos aquela que para mim é a decisão mais correcta: vou a Black Point. Se o marido dela tiver sido libertado (amanhã tem uma audiência com um juiz que vai decidir) saio de lá com o barco, e o gato que vive a bordo, de cujo nome não me lembro.

Se o juiz decidir manter o homem preso vou para Georgetown e tento falar com ele, ou com a secretária dele, que já deu a entender claramente que quer dinheiro. Nem R. (o armador) nem S. (a mulher dele, se bem esta numa menor escala) sabem lidar com estas situações. S. fala-me da lei, dos regulamentos, da multa que vai pagar, disto e daquilo. "O que estás a fazer é como analizar um filme porno com as ferramentas de análise do Disney" respondo-lhe a certa altura, exausto.

Ao fim da tarde S. conseguiu encontrar o dinheiro para a multa. Não precisa do meu - não chegaria a tempo e seria insuficiente, mas se pudesse ajudar emprestar-lhe-ia o que me falta receber do salário e ela  pagar-me-ia depois -. Em Cuba a vida não é cara e em Haiti ainda menos, não haveria marina a pagar. Felizmente ela encontrou massa. Depois foi preciso ver como a faríamos chegar ao juiz. Via embaixada americana (cujo sistema informático está, aparentemente, em baixo).

São onze menos dez. Daqui a uma hora vou para o terminal do barco-correio. Com sorte talvez consiga encontrar um canto para dormir. Entre os dois barcos-correios tenho de ir buscar dinheiro à Western Union e não sei se terei tempo. Se não tiver todo este plano vai por água abaixo.

Espero que R. seja libertado amanhã, metido num avião e deportado para os Estados Unidos, que o Juiz esqueça o arresto do barco, totalmente injustificável à luz da legislação habitual: o barco não foi usado para cometer um crime. Não transportava droga, nem imigrantes clandestinos - contra os quais as Bahamas lutam denodadamente, o que explica a severidade das penas de um "crime" que na maioria dos países é tratado com uma multa -, não servia de bordel flutuante, ou casino. Porém se olharmos para isso e pensarmos que o juiz, ou a sua secretária, ou os dois querem dinheiro por baixo da mesa o arresto torna-se claro como a água das baías de Cuba que vejo nas fotografias.

Esta viagem começou no sábado: saí do hotel mais tarde do que previra porque tive de esperar pela roupa. Cheguei a Marathon quase às onze da noite depois de ter encontrado um trabalho, dormi numa tipografia, regressei a Fort Lauderdale, embarquei num ferry, passei a tarde num café a resolver um asunto que entretanto se complicara. E agora espero pelo barco-correio (que, ainda não sabia, está atrasado uma hora pelo menos), sozinho, coberto de picadas de mosquitos na esplanada do café que entretanto fechou.

Esta viagem não começou no sábado. Começou no dia em que aprendi que somos todos parte da mesma tripulação, por mais individualistas que sejamos.  Foi há muitos anos.

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