17.6.15

Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 16-06-2015 / II

Procuro um sítio para dormir. Acabo de passar duas noites no Palmar: um hostel parece-me uma queda demasiado abrupta na realidade. Vou ver um hotel a vinte dólares. A recepção cheira a mijo, mas felizmente nos quartos esse cheiro é substituído por outro, a petróleo de candeeiro. Não percebo de onde vem: não vi um único num raio de cinquenta metros.

Resigno-me e telefono para um número que T. me deu ontem. Disse-me que M. alugava quartos "e pagas o que quiseres".

M. é uma espanhola com uma voz de quem já bebeu muito whisky. Ao telefone começa por me dizer que não "aluga quartos". Digo-lhe que trabalhei para T. e foi ele quem me deu o número. "Ah, ok. Onde estás?". "À frente do supermercado Isla Cólon". Explica-me que me vem buscar, com "um pólo encarnado e um guarda-chuva".

É daquelas personalidades que cativam imediatamente, intrigam, me fazem pensar nas "mulheres misteriosas" do The Sense of an Ending. Pergunto-lhe há quanto tempo vive em Bocas. "Quatro meses e meio". As respostas são sempre curtas, precisas, incisivas. "E por que raio vieste viver para aqui?" (a tradução não é literal). "E porque não?".

Fala muito rápido, tal como anda. Ou há ou já houve muita coca naquelas sinapses."E o que fazes?" "Leio mãos, cartas, faço limpezas".Não sei em que ponto da conversa me diz que não tem um quarto para alugar: tem "um sofá, um computador e um chuveiro quente". "Dispenso o computador e o chuveiro quente. Frio está bem". "Tem água quente. Se quiseres usas, se não não usas".

No caminho falamos de Portugal, país que adora. "O Porto e desde o Porto até um bocadinho ao norte de Lisboa", precisa. "Lisboa também está bem, mas é uma capital" (M. é de Madrid, o que talvez ajude a explicar orque não gosta de capitais. Não sei).

Vi o sofá, o duche e o computador que dispenso. Disse-lhe que ia chegar tarde porque hoje há música ao vivo no Bookstore e a miúda que lá trabalha é de uma beleza estonteante (tem dezoito anos, coitada). E amanhã saio cedo (mas não muito: a casa é a dois minutos do aeroporto). Chegámos aos números. Diz-me "um six pack custa quatro dólares e oitenta. Parece-me um preço justo para o sofá". Concordo, dou-lhe cinco dólares e voltamos juntos para a cidade. Tem um (ou uma, não percebi) cliente para ler as mãos e outros para cartas. Fico ainda a saber que tem dois ou três diplomas universitários, faz traduções e interpretações, trabalha para advogados. "Faço o que aparece".

Há poucas pessoas por quem eu sinta um asco maior do que o que tenho por T. Acaba de se atenuar um bocadinho, o asco.

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Bookstore: não é o meu ambiente. oitenta por cento de gajas boas e sozinhas e vinte de gajos com cara de parvo fazem-me sentir inábil, preguiçoso ou estúpido. Ou os três ao mesmo tempo, não se excluem.

Ou então sou eu que tenho uma visão selectiva. Não seria impossível.

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