Estava no meio de um campo, nu como o silêncio. Pouco a pouco esse silêncio foi-se povoando de palavras - era um silêncio comum, partilhado, mas ele não sabia por quem. As palavras entrechocavam-se, embatiam umas nas outras como partículas num LHC; mas apenas libertavam quatidades ínfimas de energia. Essa energia fazia-o mover-se no campo sem árvores, povoado por espantalhos inertes. Só quando o vago rumor das palavras começou a tornar-se audível a vida chegou e uma alegre harmonia inundou a paisagem.
De vez em quando apercebia breves lampejos da imagem dela, rápidos como o bater das asas de um colibri em plena tempestade. "Há dois tipos de silêncio", pensou. "Aquele que é provocado pela ausência de sons, e o que, pelo contrário, resulta da mistura de todos os sons de todas as vidas. Prefiro este último". Era um conceito que lhe tinha ficado do aturado estudo das cores, a que dedicara grande parte da sua vida.
Feliz por esta descoberta recente deixou-se levar pelas diferentes visões: o colibri num dia de tempestade; um túnel circular em que as palavras giravam a velocidades vertiginosas; um exército de espantalhos vivos e sorridentes; uma esfera armilar de ruídos, que o envolve e isola dos outros ruídos todos; o olhar de um ciclone adormecido, atónito primeiro, e depois interrogativo, dubitativo, quase terno - para terminar numa aceitação total, passiva, incondicional da nudez de um silêncio que o perseguia há anos.
"Era um ciclone feminino. Há ciclones masculinos e ciclones femininos. Não sabia". Mais uma descoberta. Cansado, retirou-se; foi rezar os alfabetos que conhecia, como se fossem terços. Mas todas as letras, todos os caracteres de todas as línguas o conduziam ao mesmo sítio, ao lugar de onde partira: uma vida, um campo de silêncio. Tu. Assim se chamava esse lugar, fonte de todas as palavras, de todas as vidas, de todos os silêncios.
"Não vale sequer a pena mencionar os encontros fugazes em escadas de metro de sentidos opostos", ocorreu-lhe subitamente. "Algures há uma força capaz de fazer as duas escadas tomarem uma direcção comum, diferente das que tinham antes. Mas não sei como se chama, essa força. Provavelmente nem nome tem".
Não tinha nome, claro: o que não existe não se chama, não precisa de nome. Nascemos com as palavras, e elas morrem connosco. O que permanece é o silêncio. Tu. Um silêncio feminino.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.