15.8.15

Beleza (cont.)

Uma vez tive um sonho que continuava de uma noite para a outra, como aqueles filmes a que antigamente se chamava trinta e uma partes. Todas as noites o sonho pegava exactamente onde tinha acabado na noite anterior. Não me lembro dele, mas lembro -me do prazer que tinha quando o sonho recomeçava. Durou uma semana.

Refiro-me sempre ao sonho, no singular. Talvez devesse dizer os sonhos. Não sei.

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Penso nisto porque olho para X., a minha ex-mulher. X. não é a inicial do nome dela; é a do diminutivo. Gosto de me referir a ela como X., não se sabe se é singular ou plural.

A maior parte das pessoas pensa que é singular, claro. Só eu e - provavelmente um ou outro dos seus amantes - sabemos que X. é o plural de X. Isto é, que há várias pessoas dentro dela.

Tontice. Todos somos muitos; uma guerra civil, como dizia aquele francês. E com mais facções do que a da Síria. De resto não sei sequer se ela tem amantes. Espero que sim. De vez em quando ainda fazemos amor, mas é mais de vez em quando do que amor.

Quando a conheci, quando nos casámos uns anos depois, quando R., o nosso filho nasceu X. era linda. Era uma mulata muito clarinha, vinte e cinco por cento, dizia ela quando lhe apetecia gozar alguém (felizmente acontecia frequentemente. Tinha um sentido de humor devastador, cáustico que nem a si própria poupava).

Depois começou a ficar feia. Nem sequer engordou. Ficou feia e um chaço, assim quase de repente. Quando o nosso segundo filho R. nasceu já não a podia ver.

X. é uma excelente mãe, inteligente e culta como não conheço outra mulher. Só tem este problema da fealdade: cada vez que olho para ela vejo-a como foi e não como é.

Os miúdos estão crescidos, cada um para seu lado. Bem educados, bons empregos. Obra dela. Eu pouco tratei deles. Demasiado absorvido com o trabalho e com a política (faço parte da assembleia municipal da nossa vila já lá vão cinco mandatos. Toda a gente queria que eu fosse mais longe, "voos mais altos", mas declinei. Não acredito que o poder valha o que custa).

Separei-me de X. há cinco anos, mas ainda penso nela todos os dias e todos os dias tento encontrar-lhe um defeito - para além da fealdade, quero dizer -. Não encontro. Isto é : aquilo que para os outros poderia ser tomado como defeitos para mim não o são. Características, quando muito.

Sinto -me traído. X. enganou-me. Ou ela ou o tempo.

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Agora estou casado com uma cabra que esconde a maldade de que é feita por trás de uma nuvem de gentileza, choro, pedidos de desculpa, disponibilidade para os outros, a família, os cachorros, tudo. E beleza, muita beleza, uma infinita beleza.

Sinto-me um esterco, incapaz de amar a mulher que outrora amei porque é feia; e de amar uma velhaca e de a desculpar e lhe perdoar tudo porque é bela.

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