5.3.16

Diário de Bordos - Funchal, Madeira, 05-03-2016

Não sei por onde começar.

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Ontem a voltar para bordo escorreguei e abri o pulso esquerdo. Pus-lhe um bocadinho de mercurocromo, uma ligadura e fui dormir. De manhã ao mudar o penso o G. viu aquilo e exigiu que fosse ao hospital. Disse-lhe que sim, claro.

Que se lixe. Meia dúzia de pontos, quase. Que "não tenho cabeça". Que tudo e mais alguma coisa. Vou tirar eu os pontos, no mar. Não é a primeira vez, mas é a primeira que estou farto. Não me apetece voltar a ouvir enfermeiros e médicos contestar a minha maneira de lidar com o meu corpo. Que é meu, recordo; mas não só porque tenho uma tripulação pela qual sou responsável. Até agora temos tido uma relação mais coisa menos coisa harmoniosa, o corpo e eu. Não gosto que terceiros - e ainda por cima terceiros que não posso dispensar - metam o bedelho.

Estou a ponchas e a paracetemol. Podia ser pior.

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Hoje há um jogo de futebol e a única mesa livre é a que está mesmo por baixo da televisão. Passo os pormenores: só espero que a vela nunca chegue a este nível de atrasadice mental.

Já esteve mais longe, é certo. Mas perceber uma regata exige mais tempo e mais inteligência do que perceber um jogo em que vinte pessoas correm atrás de uma bola e duas tentam pará-la.

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Não tenho lido e a leitura falta-me. Comprei um livro do Silva Carvalho que foi uma decepção, um do Browne que é demasiado pesado para ler na cama, um de uma escritora açoriana que se lê em meia hora e o Hotel, de varela Gomes que já li e reli. Preciso ou de ir a uma livraria ou de me habituar a ler no computador.

Afinal tenho mais de cem livros no disco rígido externo. ("Disco rígido externo". Três palavras para designar uma coisa pela qual não daria um chavo só de olhar para ela.

Comme quoi les apparences...

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O futebol é uma coisa muito aborrecida de ouvir, mas na verdade não sei o que é pior: se ouvi-lo se ver as pessoas que o vêem. Estão todas de frente para mim e sinto-me como se estivesse no cinema a ver um documentário sobre a doença mental.

A única diferença é que os períodos de catatonia são muito breves e interrompidos por momentos de agitação irracional intensos, durante os quais os espectadores falam para a televisão e entre eles, indistintamente.

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Tenho uma instrução de G.: não perder o uso da mão direita. Espero que não. Que seria de mim sem ela?

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.