1.4.16

Diário de Bordos - St. Maarten, Antilhas Holandesas; Atlântico, 10-03 a 01-04-2016


De novo em St. Maarten, de novo no Lagoonies. Cada um tem a casa que pode. Tenho sorte: as minhas são as mais bonitas do mundo.

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A travessia correu mal. Outra vez problemas com a tripulação. Claro que isto não pode ser só culpa deles. Alguma tenho também. Sei qual é: com a idade comecei a trocar a enorme dose de paciência que dantes tinha por uma igualmente grande de tolerância. Não sei se fiquei a ganhar com a troca, mas é irrelevante: nem eu fiz de propósito nem posso (ou quero) inverter o processo.

Há qualquer coisa de arrogante nesta mistura de tolerância: "sê o que queres ser" com falta de paciência: "mas não me chateies".

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Algumas notas de durante a viagem. Confirmo que não consigo conciliar a escrita e a navegação. Por um lado problemas físicos (fáceis de resolver, verdade seja dita); por outro de disponibilidade mental. Vão mais ou menos em bruto. Um dia terei tempo (e paciência?) para as editar.



Alguém cujo nome não recordo descreveu o avião como uma terra de ninguém. As viagens aéreas teriam segundo esse autor essa estranha característica (o "estranha" é meu, creio. Não me lembro o suficiente do texto para ter a certeza) de nos fazer passar de um país a outro por intermédio de um território vazio, neutro, morto (e mortal, pelo menos de aborrecimento). Nada mais verdadeiro.

Escrevo no poço de uma embarcação de vela na qual saí ontem do Funchal com destino a Panamá na melhor das hipóteses ou St. Martin se não.

Vou demorar três ou quatro semanas a chegar e vejo quão diferente é o mar. Não é uma terra de ninguém: é de todos. Não é neutro e muito menos vazio. O mar vive e nele se vive, mexe connosco literal e simbolicamente, mata e faz viver.

Talvez seja por isso que chegar de barco a um sítio qualquer é tão diferente de chegar por outra via qualquer: antes de chegar, entre a partida e a chegada mudou-se de vida, mudou-se a vida, mudámos nós. Chegamos diferentes do que largamos porque o mar nos fez viver.

No mar não se pode ser ninguém.

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Esta sexta-feira passou num instante. Apanhámos finalmente vento, se bem ainda um pouco variável. E vimos orcas. Um par delas, aos saltos perto do barco. Foi a primeira vez que vi orcas tão perto.

Enfim, penso que são orcas. Parecidas eram, mas no Funchal vi uma das empresas de observação de baleias anunciar "False killer whales".

A averiguar. Que eram bonitas eram. Resta saber se são verdadeiras ou falsas.

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São onze da noite. Vou amurado a bombordo, com quinze nós de vento pelo través. Decidi ir para Sul: tenho uma depressão bastante cavada na proa e arrisco-me a apanhar porrada da grossa. Como sempre o SB avança bem. Sete oito nós nas calmas, sem esforço aparente, elegante como um bailarino em pontas.

A noite ainda está fria, mas nada que se compare às anteriores. Não se vê a ponta de um chavelho. Que raio, para quando as doces noites tropicais? E melhor ainda: para quando as doces noites tout court? Apre que nunca mais é Maio...

E é isto. Com o problema da electricidade aparentemente resolvido o dia foi-se que não o vi passar.

E o quarto. Falta meia hora e é como se ainda agora tivesse começado. Há dias assim: parecem minutos.

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Hoje mudei o penso. Está a evoluir bem. A pomada antibiótica tratou do princípio de infecção que tinha aparecido. Terça-feira devo poder tirar os pontos.

É todavia forçoso reconhecer que o espanto do enfermeiro da clínica que foi chamar o médico era justificado. O raio da ferida é feia.

(E o médico do hospital que coseu esta porcaria bem podia ter dado um ponto ou dois mais).

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Não há um pum de vento outra vez. Vou esgotar esta noite e amanhã um dos dois dias que tinha de reserva de combustível.

Ou seja: vou mesmo ter de parar em St. Martin.

É uma chatice, mas verdade seja dita: há-as muito piores.

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Uma hora depois de ter escrito isto o vento apareceu e com ele a esperança de poder não parar em St. Martin.

A noite chega, encantada e encantadora: com mar chão mesmo à bolina o SB faz seis nós em dez de vento real.

Já saímos dos trintas de latitude. Estamos nos vinte - e muitos, é certo. Mas é nos vintes que estão Câncer e Capricórnio, não é? É. E muito antes do primeiro teremos calor e alísios -.

Por enquanto calor só durante o dia. E de alísios nada. É como se estivéssemos numa estrada no campo à espreita da primeira entrada na auto-estrada.

Sabemos que há uma mas não quando. Entretanto vamos andando: a estrada é bonita e vai na boa direcção.

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À bolina, claro, ou não me chamasse eu Luís Miguel Serpa. Não é muito surpreendente, verdade seja dita: ainda estamos nos vinte e muitos de latitude. Devemos estar a apanhar o limite Sul de uma depressão monstruosa que atravessa o Atlântico lá para cima. Quando acabarmos de nos cruzar deve entrar Norte, o vento que espero nos levará até aos alísios.

Por enquanto não estou preocupado: estamos no rumo, o mar continua quase de senhoras, o SB avança bem. A questão é saber se entre o Sudoeste que tenho agora e o Norte do fim da depressão terei muito tempo de Oeste. Mas como é uma pergunta cuja resposta só chegará em "tempo real" deixo-a para quando sua majestade o momento real chegar. Por enquanto para a frente é que é o caminho.

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Outra vez o maldito motor. Ponta de vento. Pus de lado a ideia de chegar ao Panamá. Chegar a St Martin já vai pedir duas ou três acrobacias com o combustível e com a comida (esta menos, é certo. Entre o que temos e que vamos pescar vai chegar).

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No Funchal há dois shipchandlers. Um fica na Marina e deve ser evitado, excepto por quem gosta de ser enrabado ou, dito de forma menos popularucha, enrolado, enganado, roubado, expoliado, embarretado e por aí adiante. O outro fica na rua em frente e é o que vou usar da próxima vez que por ali passar.

A qual gostaria fosse muito em breve, verdade seja dita.

Esta viagem tem sido rica do ponto de vista das escalas: Palma de Mallorca, La Linea, Funchal, St. Martin se não conseguir evitar lá parar...

Ate me custa pensar que quero evitar St. Martin mas quinze dias em Palma, mais de uma semana em La Línea e quase uma no Funchal são paragens a mais. Dos cem dias que tinha já lá vão quase metade e ainda não estou no Pacífico nem nada que se pareça.

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Que noite sublime. Fossem todas assim e a vela seria mais popular do que o futebol. (Felizmente não são e nunca será).

A Lua em quarto crescente mesmo por cima de mim e ao lado de Órion. Vento Sueste dez onze reais entre a amura e o través de bombordo. Mar calmo, de senhoras. Raras nuvens: a visibilidade é perfeita. Vejo as estrelas, o horizonte a toda a volta, a esteira do SB, que ligeiramente adornado "pula e avança" como se quisesse, ele também, recuperar o tempo que perdemos.

Volto a ter esperança numa ida directa para o Panamá. Não é impossível.

À popa por bombordo tenho um planeta que penso ser Marte [era Júpiter]; a estibordo a Ursa Maior. Do mesmo lado para ré do través a Polar. Ligeiramente para vante e mais altos os fiéis Gémeos.

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Hoje tirei os pontos. Está um bocadinho infectado mas nada do outro mundo. Carreguei-lhe com a pomada antibiótica e deixei-o ao ar livre um bom bocado. Confesso que estou farto desta ferida. Ainda por cima vai deixar uma cicatriz horrível. Que estupidez foi aquela queda.

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Por muito multicultural que se seja há sempre coisas que não lembram nem ao diabo, quanto mais a um pobre diabo como eu.

Hoje deixei um salpicão cortado às rodelas para comermos como snack. B. não lhe tocou: não sabia se era para comer cru ou se tinha de ser cozinhado.

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Aqueles dos meus leitores que paciente e generosamente me lêem há algum tempo lembrar-se-ão talvez da minha constante preocupação com os sapatos. Por razões de peso - peso literal, aquele que as balanças dos aeroportos medem, os meus ombros portam quando tenho de andar com o saco às costas e a minha carteira desconhece - só tenho um par de sapatos (para além das botas de mar, claro).

Esses mesmos leitores, coitados, leram a minha desilusão com a marca Foreva, a fraude que foi o calçado Land Rover comprado no Panamá, a alegria que me deram uns sapatos adquiridos em Sitges, em saldos, cuja marca esqueci.

Tenho de me render à evidência, pôr o patriotismo sapateiro no armário de onde nunca, de resto, devia ter saído e reconhecer a superioridade dos nossos vizinhos espanhóis no que respeita ao fabrico de calçado.

Porto presentemente sapatos da marca Zara Man que me foram oferecidos há quase um ano (nove meses, para ser preciso) por uma jovem e bonita senhora que se apiedou pelo estado do par que trazia à chegada a Lisboa. No limite do praticamente novo ou até para lá - ou seja, inutilizável -.

Pois bem: os sapatos Zara Man têm-se aguentado como há muito tempo não via. Três hurras e um hip à Zara, man. Só agora, ao fim de nove meses de uso quase constante deixaram de estar novos. E ainda deve faltar um valente par de meses (ou mais porque em breve chegarei às latitudes descalças) para entrarem na fase praticamente novos - na qual se manterão, aposto, um largo período de tempo -.

Deixo aqui expressa a minha gratidão à jovem senhora (a quem de passagem desejo as maiores felicidades e que o seu namorado actual tenha sapatos decentes) e à Zara Man.

(Não são infelizmente muito apropriados para andar a bordo. Mas como disse em breve estarei nas latitudes descalças e isso deixará de ser um problema.)

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Leio Derrida pela primeira vez (a minha relação com as modas, quaisquer que elas sejam é difícil e baseada numa assincronia absoluta). O livro é um conjunto de dois textos que ele apresentou num congresso de escritores (ou coisa que o valha). O primeiro (do qual estou bastante no início) chama-se Cosmopolitismo e estuda a ideia de uma rede de cidades livres (villes franches no original) na qual seriam acolhidos todos aqueles que nelas procurassem refúgio.

Que ideia tão bonita! Cidadãos acolherem outros cidadãos, seus semelhantes, seus iguais!, sem a interferência de políticos, ONG, padres, freiras ou mullahs. (Devo confessar que ainda não cheguei à parte onde ele explica o conceito. Por enquanto só o vi mencionado como um desiderato. Mas é assim que o imagino).

A imigração é um direito e um problema, eu sei. E os políticos terão sempre uma palavra a dizer, obviamente. Mas a ideia é sedutora.

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"Quid est in territorio est de territorio". É no On Cosmopolitanism que leio esta frase, da Idade Média.

Idade Média? Ao privilégio de ter alguma da música mais bonita que jamais foi feita junta-se agora o de um dos princípios mais belos jamais formulado.

Durante muitos anos vivi pensando que o meu país é aquele onde estou. Aos poucos fui mudando: o meu país é Portugal e eu um nómada que o leva comigo para onde quer que vá. Agora vejo que há mil anos alguém resumiu o problema de uma forma sublime. Se estou aqui sou daqui. Se não quero ser daqui vou para de onde quero ser.

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Saio de quarto com uma noite completamente diferente. Em menos de uma hora o céu cobriu-se e o vento subiu um grau na escala de Beaufort. O AV já não pula: avança desabridamente.

Com a velocidade o vento aparente foi mais para vante, claro, e agora estamos num ângulo um pouco mais fechado. Mas o mar continua calmo e depois destes dias de calmaria a velocidade é um prazer infinito, inesgotado, lindo como estava a noite há pouco.

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Bolina cerrada! Vá lá que pelo menos não tenho de fazer bordos (e há vento).

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O mar perdeu a ingenuidade. Está formado, claro. E com este vento de merda quase não avançamos.

O SB bem se esforça, verdade seja dita. À mais pequena rajada parece que salta. Mas a milagres ninguém nem nada é obrigado. E não é com doze nós de vento na amura e o mar dos vinte de hoje de manhã que lá vamos.

Esta porcaria devia rondar a norte. Espero que o faça depressa. Cada dia me parece mais difícil ir directamente ao Panamá.

Ainda por cima ontem perdemos um montão de água doce da forma mais estúpida possível: alguém deixou uma torneira entreaberta numa casa de banho. Quando liguei a bomba a água começou a escorrer e só demos por ela quase quarenta minutos depois. Alguns cem litros para o galheiro. É difícil dizer a raiva que sinto.

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Pronto. Foi-se a última gota de esperança de não parar em St. Martin. Tive de mudar o tanque de água. Ou seja, temos duzentos litros. Dá para duas semanas à vontade e três apertado. St. Martin à vontade (temos estado a gastar um pouco mais de dez litros por dia) e Panamá apertado. Não posso arriscar. Dois dias parado e fico sem água doce a bordo.

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Quinta-feira 17/03

Dir-se-ia que a viagem começou hoje...

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A ideia de Derrida é totalmente irrealista. Mas é linda. Adoro inteiramente: o irrealismo de uma ideia nunca foi suficiente para me afastar dela.

Adiro igualmente à sua opinião sobre o perdão: só o que é imperdoável pode ser perdoado. Um pouco como a liberdade de expressão, que só se aplica ao indizível.

Derrida diz ainda que o perdão "político" não é o verdadeiro perdão. Este é pessoal, da vítima. Se a vítima morreu o perdão morre com ela, porque ninguém se pode pôr no lugar dela para perdoar.

Acho que se pode extrapolar e aplicar o conceito à solidariedade: sou contra os impostos redistributivos porque a solidariedade é minha, não do Estado e este não pode ser solidário em meu nome.

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B. é uma espécie de prodígio de rigidez mental num corpo jovem e um sorriso desafiante. Hoje disse-me que não bebe café porque não quer tornar-se "numa daquelas pessoas que precisam de café para começar o dia". Explica-me que em toda a sua vida bebeu um café "por engano". Perante o meu olhar interrogativo continua: "alguém me fez um café e eu fui demasiado polido para recusar".

Não gosta da minha cozinha. "Demasiada carne de porco". Em cada o seu prato habitual é "legumes cozidos". Come muito pouca carne.

(G. partilha a opinião sobre o porco. Eu também).

B. é um tripulante adorável. Sério, não pretende saber mais do que o que sabe e o que sabe faz bem. Gosta de governar e muitas vezes desliga o piloto. Governa bem, concentrado, atento. Antecipa as guinadas e não usa demasiado leme.

Se eu tivesse um bocadinho mais de paciência puxaria um bocadinho por ele. Infelizmente não tenho. A minha paciência foi toda substituída por uma inesgotável carrada de tolerância.

Não julgar os outros, não esperar nada deles, aceitá-los como são é uma forma de arrogância, não é? De distância, de afastamento.

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O vento voltou e com ele a esperança e o bom humor. Dia 30 ou 31 estaremos em St. Martin (agora já não há dúvida).

Vou para a Lagoonies Marina. Se St. Martin é a minha casa o Lagoonies é o meu quarto.

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Comprei uma quantidade enorme de enchidos e de porco, sobretudo entremeada. Está tudo farto, eu incluso.

Quero poder fazer compras todos os dias, se possível num mercado. E ir ao cinema. E escrever no meu computador sem ter de me preocupar com a bateria. E andar na minha bicicleta Vitus Turbo azul, tão linda que até me dói só de pensar nela.

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Não bebes café, não bebes chá... És um asceta, B.

B. não sabe o que é um asceta. G. tão pouco. Quando lhes explico, G. declara que a filosofia é aborrecida. Tento hedonismo. Também desconhecem.

Foi por coisas como esta que há muitos anos parei de fazer vela. Algo me diz que desta não estou muito longe.

É curioso. Costumo dizer que não sou um intelectual que navega; sou um marinheiro que sabe ler.

Mas os intelectuais tão pouco me aceitariam como um deles: os meus conhecimentos são básicos, primários, insuficientes.

Entre duas águas, dois mundos, duas vidas. Só quando morrer me integrarei verdadeira e definitivamente.

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Vinte e três graus e vinte sete minutos de latitude. Entramos geograficamente nos trópicos. Frios, demasiado frios; e tristes. Os dias passam depressa mas eu quero chegar mais depressa do que eles passam.

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Fiz pão. Não vai ficar grande coisa, mas enfim. O próximo será melhor.

Talvez.

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Pouco a pouco os marcos que costumo usar nas viagens grandes aproximam-se: 1317 milhas até à chegada (metade da viagem na carta); 40 graus de longitude (longitude mediana); 1000 milhas até ao destino (menos de quatro dígitos).

A seis nós, seis e meio vamos mais devagar do que poderíamos ir e mais depressa do que já estivemos: passámos dias de nem cem milhas fazermos.

Chegamos no fim do mês. 31 de Março ou 1 de Abril. Está quase. Mais dez dias. Se passarem tão depressa como os onze que levamos vai ser um abrir e fechar de olhos.

A Lua está quase cheia. O planeta que tem ao lado é Júpiter, creio. B. mostrou-me há pouco uma aplicação que tem no telefone chamada Google Star, ou Sky. É um mapa das estrelas hiper bem feito.

Vou poder reencontrar muitas das estrelas que conhecia quando navegava com sextante e depois esqueci: Fomalhaut, Arcturus, Capella, Pollux, Alderaban...

Gostava de saber o que é feito do Gérard, astrónomo amador e gago que atravessou comigo o Atlântico em 83 ou coisa que o valha. Todos os dias, de manhã e à tarde me preparava as observações com quatorze ou quinze estrelas (normalmente preparam-se sete).

Enfim, preparavam-se. Sextante agora é para saudosistas e militares americanos, que vão reaprender a usá-lo não vão os terroristas deitar abaixo a rede GPS.

Espero que não seja amanhã a véspera desse dia. Se Deus existisse o GPS seria uma das provas da sua existência.

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Hoje passamos dois marcos importantes: o meridiano mediano da viagem (40 W) e a metade da distância na carta (1317'). O próximo é as mil milhas: a distância passar de quatro para três algarismos. O seguinte é a chegada.

O dia está lindo, temos tido vento (se bem não tanto quanto eu gostaria. Mas enfim, melhor do que nada) e a energia só hoje começou a dar sinais de que pode vir a haver um problema. Até aqui temos conseguido fazer doze horas entre cada carga de baterias.

Ou seja: tudo estaria bem no melhor dos mundos não fosse esta vontade de chegar.

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Mais uma pega com G., que começa seriamente a implicar-me com o sistema. Se não aguenta a privação de tabaco não deixe de fumar.

Excedido, disse-lhe que não preciso dele para nada (é verdade é ele sabe-o). Quando acordei a minha casa de banho estava limpa de brilhar.

G. tenta compensar as suas deficiências em navegação com as limpezas, mas desta vez excedeu-se. Se há coisa que detesto é graxistas, lambe-cus e afins; além disso ele sabe - porque eu lhes disse - que não quero que eles limpem a minha área do barco - do meu camarote e da minha casa de banho trato eu. (Admitidamente estava bastante suja mas chateia-me gastar água - que boa desculpa- a limpar uma coisa que sou o único a usar e a sujar).

Para compor o ramalhete: não me acordou para o quarto.

Resolvi fazer pão. A noite está sublime: quinze nós de vento, lua cheia, o S. B. calmo, tranquilo como um corredor de fundo. De maneira fiz pão. No poço ao luar. A raiva passou - passam sempre e depressa, de qualquer forma - e de manhãzinha haverá pão para quem estiver de quarto.

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Estamos quase a chegar - falta uma semana, se o vento não nos pregar grandes ou prolongadas partidas - mas o calor não está à nossa espera.

Está coisa do aquecimento global tem que se lhe diga. Quanto mais não seja, o dinheiro que já se gastou com aquilo daria para aquecer o planeta três vezes e não andar aqui um gajo cheio de frio nos vinte e um (e muitos) de latitude. Norte, acrescento porque ainda ontem foi o equinócio.

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Os chineses têm um provérbio segundo o qual metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.

Hoje chegamos a essa metade final: vamos passar a marca das mil milhas. Isto é, a partir desta noite vão faltar menos de mil milhas para a chegada. Uma semana, à velocidade que temos vindo a fazer.

Largámos do Funchal faz hoje duas semanas. Foram longas, mas passaram depressa. Espero que esta última passe igualmente depressa.

Estou ansioso por chegar. Nada tenho em comum com esta gente. Nem o mar: o meu é diferente do deles.

G. está na sua quarta travessia do Atlântico e hoje estava espantado por haver ondulação de duas direcções diferentes. Que vêm estes gajos fazer para aqui?

Chatear-me é só parte da resposta, não é a resposta toda.

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B., o homem que não conhecia a palavra asceta (verdade seja dita que G. tão pouco) não sabia que se pode fazer queijo de ovelha.

E ri-se quando eu falo de queijo de ovelha como se eu fosse de outro planeta.

Queijo de ovelha.

Não sou eu quem vem de outro planeta.

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Daqui a duas horas é sábado. Quem pensava que nunca mais era sábado enganou-se redondamente. Com vinte, vinte e cinco nós de vento o SB voa.

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Entro de quarto à meia-noite e provavelmente terei de rizar, por causa do pano. Está colado contra os brandais como uma t-shirt molhada contra as mamas de uma senhora bem provida.

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Mais uma conversa com G. Não será a última, tenho a impressão. Pelo menos lá reconheceu que terá sido "inutilmente rude".

O problema foi o tabaco; mas não só. O homem é um diabo e vou ter de o aguentar mais dois meses.

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"Fez-me sentir que não sou parte da tripulação". B. referia-se ao aprovisionamento no Funchal, que não foi muito bem feito. Por uma razão qualquer eles não perceberam que estavam ali para escolher as coisas de que gostam e queriam comer durante a viagem, eu excedi-me na carne de porco e nos enchidos e ao fim de uma semana eles já não podiam ver entremeada no forno com farinheira. Ainda por cima B. é meio vegetariano...

O sacana fez-me chorar. Tenho como principal prioridade fazer uma tripulação unida, fazer que todos se sintam bem e dizer-me aquilo foi como se me espetasse uma faca.

Em St. Martin vamos corrigir isso, B.

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Mais una dias e a Lua estará em Quarto Minguante. Por agora ainda está bastante grande e ilumina suavemente a noite. A Ursa Maior já está de cabeça para baixo. O vento mantém-se nos dezoito vinte, vinte e cinco nas rajadas e o SB voa, claro. Cheira-lhe a casa.

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As coisas com o G. parecem melhorar. Engoli alguns sapos e ainda não pus tudo para fora. Só em St. Martin, depois de ele ter fumado um cigarro (ou um maço deles, mais provavelmente) e bebido umas cervejas é que vai ouvir o resto.

O fdp arruinou-me a viagem. Uma travessia atlântica num veleiro não são nem o momento nem o local certos para se deixar de fumar.

Passámos há bocadinho a marca das quinhentas milhas. Amanhã a esta hora faltarão trezentas e cinquenta. Depois duzentas e depois estarei em casa.

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O G. está mais ou menos controlado. Agora é a vez do B. Verdade seja dita que hoje fui um bocadinho bruto com ele. Ainda estava furioso com a história de ontem à noite: vinte nós de vento à popa e eu pendurado no mastro porque o cabo do lazy-bag estava entalado no moitão. Peço-lhe para ir ao pé do mastro dar-me um bocadinho de folga e diz-me que não!

E eu lá em cima, agarrado com uma mão, vagas de três metros, o mastro de um lado para o outro. Ainda me engasgo só de pensar nisto. Depois lá consegui desenrascar aquilo e vim para baixo exausto.

Hoje saiu-me, claro, e o menino fez birra. São quatro da tarde e ainda não saiu do camarote.

Que raio de vida esta! Só me apetece mandar isto tudo para o c... e ir para casa.

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B.: aquela cabeça é um poço de certezas. Tentar encontrar uma dúvida ali dentro seria como procurar um prato de spaghetti alla bolognese numa escultura do Miguel Ângelo..

Que tristeza!

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Medo? Claro que tenho. Só os idiotas não têm medo. O medo alerta os sentidos, aguça o pensar e ajuda a fazer as coisas mais depressa e melhor.

Um gajo aproveita-se do medo e deita-o fora quando já não precisa dele. O contrário é coisa de cobarde, não de homem.

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O B. acaba de me dizer que desembarca em Marigot. Que bom. Não suporto cobardes, não consigo conviver com eles.

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