A ideia é torcer as palavras, decompô-las, transformá-las até elas ficarem irreconhecíveis. Leite, por exemplo torna-se arame; aquele e comum demonstra apenas que o processo não foi executado com suficiente vigor. Candeeiro deu amor; porta, anticiclone. E assim por diante.
Este processo é conhecido nos meios cientificos e na Academia por Método de Humpty Dumpty. Os meios literários apropriaram-se dele e chamam-lhe (não sem alguma auto-ironia) escrever. Quando em vez de palavras se tomam frases inteiras muda de nome e passa a poesia. Todo ele é frágil, caótico: depende muito do contexto e as relações causais entre um estado e o que o precedeu são frequentemente incompreensíveis. Indecifráveis. Invisíveis.
"Escrevo uma carta de amor à luz frágil do candeeiro, na esperança mais ou menos fundada de que um dia ela a lerá" pode transformar-se por exemplo em "Fui dar um passeio a cavalo para os lados de Salvaterra de Magos"; ou "Fui à Pastelaria Versailles comer um pastel de nata. Entrei em vez de ficar na esplanada porque sei que ela é friorenta e com um pouco de sorte talvez a visse. A esplanada estava cheia e a sala também mas não a vi. Deixou de ir à Versailles, suponho".
Quando acabei a carta fiz uma máquina de palavras com água a quarenta graus e pouco sabão. Mesmo assim algumas encolheram e outras debotaram. Pu-las a secar à varanda, ao sol frio e quase irritante de tão pálido deste dia de Outono. Imaginei-as numa praia puxadas por aqueles aviões que rebocam anúncios de cremes de sol ou de festas num sítio qualquer não muito longe, ondulando como ténias perdidas num intestino demasiado longo.
Não seria talvez má ideia protegê-las do sol como se protegem os corpos de radiações ou a vista de uma luz forte.
É preciso distância: afastar as palavras de tudo o que lhes possa perturbar a metamorfose semântica, desviá-las do caminho evolutivo. Numa palavra, resumindo: de tudo o que lhes possa dar um sentido ou tirá-las do silêncio que lhes serve de placenta.
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