(Chuva, balanças)
Chove e sais de ti. Vais buscar a bicicleta, comprar um computador portátil, pagar os óculos que encomendaste anteontem, por causa dos quais passaste uma hora com um gajo a escarafunchar-te os olhos como se fosses um nariz e ele um dedo, o teu dedo. Acaba-se-te a intimidade, as desculpas para não fazeres o que devias ter feito há dias. Como se um degrau mais tivesse saído da terra e o tivesses subido empurrado pela água.
Não deixas de pensar na nuvem de onde caiu a chuva, na maré baixa que em breve te baterá à porta, mas isso pouco interessa: não foi ontem que aprendeste a viver um dia de cada vez, ou a conciliar os dois pratos da balança.
Das balanças. São muitas.
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Os olhos estão bons, mas o jovem que mos inspecciona tão profundamente diz-me que devia começar a tomar comprimidos para que não piorem. "Sim; talvez", respondo. Nem para reparar o que está avariado os tomo facilmente...
Daqui salto para a conversa que tive com um médico espanhol em Moçambique sobre a profilaxia versus terapia da malária. Era um especialista e arrasou-me em aproximadamente dois segundos:
- Tudo o que dizes sobre a profilaxia é verdade. Mas se pegares em dois grupos de mil pessoas cada e a um fizeres profilaxia e ao outro fizeres apenas terapia terás mais mortos neste do que no primeiro.
Quase morri no hospital de Genève: não fiz nem um nem outro. Lidar com o corpo é uma complicação, uma ambivalência e eu sou um tipo simples, no limite do simplório.
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Dizia-me R. A. recentemente que não se deve falar dos restaurantes de que gostamos, sob pena de os perder. Está podre de razão, claro. Mas seria estultícia pretender que uma menção no coitado deste blogue tenha um impacto qualquer no que quer que seja; e estultícia ainda maior não o fixar para futuras referências (já o mencionei, creio, uma vez. Repetir a menção não é de mais). Chama-se Delícia de Arroios. Hoje comemos lá um polvo panado com açorda de coentros e um bacalhau à Minhota que me fizeram esquecer os olhos, os comprimidos e as ambivalências. Ou seja: devolveram à vida a sua simplicidade essencial.
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O humor português é mau. São poucos os humoristas que têm piada e menos ainda os que a mantém ao longo do tempo. Não é preciso pô-los na fogueira: eles imolam-se a si próprios.
Alguns em fogo mais lento, é certo. A bananeira dá mais sombra para um lado do que para outro.
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Não se deve perder muito tempo com o insignificante, o medíocre, o que não interessa. Cheira mal, é feio e rapidamente provoca urticária.
Nietzsche tem uma ou duas frases sobre isso (enfim, tem muitas sobre tudo). "Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se transforma ele próprio num monstro".
Devemos pesar as palavras: entre um monstro e um medíocre há um abismo. Ou uma montanha, se preferirem.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.