27.9.16

Amarcord

Lembro-me perfeitamente. Nessa noite as lebres tinham-se embebedado com um molho de palha fermentada. Impossível acertar numa. Por causa dos zigzagues, claro. Eu estava sóbrio como um carvalho num dia de chuva. As lebres titubeavam. Via-as bem por causa dos raios que caíam sem cessar perto de onde elas andavam. Tentei dar ao cano da minha espingarda uma forma curvilínea, inspirando-me para tal nas formas da montanha russa a que em criança o meu pai me levava. As balas bem saíam aos esses, mas mesmo assim não acertava uma. O defeito era meu, claro. Não é sóbrio que se caçam lebres bêbadas, tal como a embriaguez não ajuda a caçá-las quando estão sóbrias. Um zigzague que se transforma no celebríssimo, excelentíssimo, adequadissimo zaguezig rosiano, círculo vicioso em virtuoso, noite sem sono em sono sem noite. Em miúdo divertia-me a dizer o alfabeto de trás para a frente. Tão bem, é preciso acrescentar, que um dia caí de costas numa piscina vazia: as letras definiam o sentido da minha marcha. Comecei a jogar à macaca com elas, mas perdia sempre: juntavam-se e formavam palavras, letras malditas. Um dia cresci. Aprendi a ignorá-las, moldá-las, dar-lhes a forma e o sentido que eu queria que elas tivessem e tomassem. Transformei-me num cavalinho de carrossel e agora lembro-me de quando caçava lebres montadas em montanhas russas.

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