24.12.16

Escala de Serpa

Todos nós conhecemos - ou pelo menos ouvimos falar - da escala de Richter, uma escala que mede a intensidade dos sismos; nem todos, mas alguns dos meus leitores conhecerão decerto a escala de Beaufort: mede a intensidade do vento e é linda de morrer (ou melhor: a sua historia é linda de morrer: Beaufort inventou-a para avaliar os panos que envergaria no seu navio, os colegas acharam a ideia tão boa que a universalizaram; ainda hoje é usada). A escala de Douglas mede o estado do mar, foi inventada no princípio do séc. XX e poucos navegadores a conhecem. Menos ainda - graças a Deus - conhecem a escala de Saffir - Simpson, usada para avaliar a força (e prever os estragos) dos furações.

Hoje venho propôr uma nova escala, tão importante como todas as supra-mencionadas. Com toda a humildade chamar-lhe-ei "Escala Serpa da Tesura" e como o nome indica serve para medir os diferentes graus da pobreza (em calão: tesura, para quem não sabe).

Uma das características bonitas da tesura é que se reproduz assexuadamente. Reproduz-se por partenogénese. Um físico diria "Tesura atrai tesura na razão directa da falta de dinheiro". Se fosse um físico pretensioso diria "Pobreza atrai pobreza na razão inversa do carcanhol disponível". (É do domínio público que dinheiro atrai dinheiro. Escusado será certamente fazer a aproximação entre os conceitos de massa e pobreza. As diferenças só se atraem no magnetismo - o que de resto nos levaria para os interessantes terrenos da atracção magnética não estivesse eu ocupadíssimo a desenvolver a Escala Serpa da Tesura - ).

Ora bem:

Nível Zero: Pode comprar-se uma garrafa de vinho sem matutar mais de dois segundos sobre o preço (lembro que esta escala mede a falta de guito e não a sua presença. Nunca gastei mais de trinta euros numa garrafa de vinho e mesmo essa foi para oferecer. Se um dia fizer uma escala para a abastança falarei em todas as abençoadas garrafas de Chateau Haut Marbuzet et simili que bebi até hoje. Ou uma escala da amizade, vá).

Nível Um: A garrafa de vinho custa ligeiramente acima de dez euros. Um gajo pergunta-se "vale a pena juntar uma moeda à nota? Não haverá por aí vinho que me permita receber antes uma moeda em troca desta nota, tão bonita?"

Nível Dois: O problema do vinho está resolvido. Não se fala mais nisso. Começa-se a pensar na passagem a ferro das camisas (lembro que esta escala é pessoal: detesto passar a ferro. Cada um dos leitores terá certamente outra antipatia). A Cinq à Sec lava e passa pelo mesmo preço; a senhora da esquina passa só, por um preço ligeiramente inferior. Que fazer?  Qual escolher?

Nível Três: Deixa de haver dilema na escolha do fornecedor para a passagem a ferro das camisas.

Nível Quatro: Deixa de haver fornecedores para a passagem a ferro das camisas. Um gajo passa-as ele próprio, se possível com um ferro decente, ouvindo música decente e pensando numa mulher decente (de bonita, não de costumes).

Nível Cinco: A passagem a ferro das camisas torna-se um hábito; o preço do vinho deixa de ser um problema: se uma nota de cinco não tiver troco e esse troco for uma moeda preta não se compra. Os dilemas mudam, a memória aviva-se, como o frio da primeira manhã de Outono: quanto custa um copo de vinho no café X? E no Y? (Os efeitos positivos da falta de massa sobre a memória são incomensuráveis).

Nível Seis: A questão do preço do vinho nos cafés fica resolvida. O teso começa a lembrar-se da qualidade do vinho nas tascas e a compará-las (cf. ponto anterior).

Nível Sete: Um gajo hesita entre apanhar um autocarro e beber um café. Este ponto é interessante porque permite avaliar ao mesmo tempo actividades fundamentalmente diferentes. É uma espécie de sinestesia financeira. No supermercado: o único critério para a escolha de uma coisa qualquer é o preço. Batatas, cebolas, alhos, salsichas, azeite, carne picada, sal, pimenta, desodorizante e por aí fora deixam de ser entidades com uma personalidade e uma identidade próprias e reduzem-se a uma etiqueta de preços.

Nível Oito: Um gajo não pode nem beber um café nem ir de autocarro.

Nível nove: Fica para depois.

Nível Dez: Um gajo está na rua e tem miúdas giras a levar-lhe comida à meia noite.

Notas:

1 - É importante notar que a segunda lei da termodinâmica se aplica como uma luva à situação financeira de uma pessoa: é mais fácil passar de rico a pobre do que de pobre a rico.

2 - Deve distinguir-se entre ser pobre - uma questão de números - e miserável - coisa de atitude -. Pobre é aceitável; miserável não.

3 - Mudar de nível com dinheiro emprestado não conta como mudança de nível.

4 - Há uma espécie de pedantice em ser pobre por escolha própria; conta como pedantice, caso um dia alguém decida fazer uma escala desta. Mas continua a incluir-se na escala da pobreza, porque por mais que o diga ninguém quer ser pobre ou é pobre porque quer.

5 - Reitero o ponto dois: Pobre sim; miserável nunca.

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