16.1.17

Acaso

Questão de acaso, simplesmente. Um homem vai pelo passeio; tropeça, cai para o lado da rua, um carro desvia-se, o motociclista que vinha em sentido contrário assusta-se e guina bruscamente para o passeio oposto, cai para cima de um carrinho de bebé. A senhora que empurra o carrinho ajuda-o, o bebé chora com aquele capacete que por sorte não o atingiu na cara. O motociclista tira o capacete. Do outro lado da rua o senhor que tropeçou levanta-se sem ajuda e continua o seu caminho. O carro tão-pouco parou. Ficam o motociclista, a criança e respectiva mãe.

Daqui nasce uma história de amor. Agora é preciso decidir se a senhora é casada, divorciada ou viúva; e o homem também, embora a priori pareça mais fácil: ia sozinho na sua mota. A senhora não. Aquele bebé veio-lhe de alguém. A menos que não seja o dela, claro. Pode ser empregada dos pais da criança, por exemplo. Pode tê-la raptado da creche ou de um centro comercial durante uns minutos de falta de atenção dos pais. Ou então não a raptou: o carrinho de bebé estava abandonado e ela em vez de o levar à Polícia levou-o para casa. Inimaginável o que a vontade de ser mãe consegue. Ou está a tomar conta do filho de uma amiga que tinha um encontro com o amante ou consulta no médico.

Vamos começar por definir a idade da senhora? Trinta anos. É uma idade bonita numa mulher. Entre os trinta e os quarenta, vá. Advogada. Loira, baixinha, bonita. Tem um sinal no lado esquerdo da face. Junto ao olho? Ao canto da boca? Perto da orelha? Alguém disse uma vez que as mulheres têm os sinais junto à parte do rosto que acham mais interessantes, mas é possível que seja ao contrário: olhos, nariz, lábios, orelhas ficam mais bonitos com um sinal por perto. Talvez as mulheres escolham a localização do sinal para tornar bonita a parte do rosto que acham feia.

Tudo é sempre possível. A função do escritor é justamente desfazer as possibilidades, reduzi-las a uma só, poder dizer: "Foi assim que as coisas se passaram".

Mas ainda estamos na cena do acidente. A senhora com um sinal do lado esquerdo da cara ajudou o motociclista. Este trata agora da mota. Tem de a tirar da rua, está a empatar o trânsito. Ouvem-se buzinas, impropérios. A senhora faz sinais para tentar explicar aos condutores que têm de esperar. A mota é rapidamente posta de pé. O trânsito reflui. O homem agradece à senhora. Não está ferido: vinha devagar. Tem claramente a idade da mulher. Agora há que decidir o que fazia ele ali, como se chama, se é alto ou baixo, gordo ou magro, bonito ou feio. Todos os pormenores contam.

Mas antes estabeleçamos que o carrinho está um pouco amolgado, a mota sofreu duas ou três avarias menores - partiu-se um retrovisor, entortou um pedal -; o bebé está nos braços da mãe e já não chora.

- Bom dia. - Ou seja, o acidente ocorreu de manhã - Obrigado pela sua ajuda. Desculpe-me, vi o carro vir para cima de mim e guinei impulsiva e descontroladamente. - Fala bem, articula as sílabas. - Eu pago a reparação do carrinho do bebé, claro.
- Viva. Não se preocupe. De qualquer forma o rapaz tem dois anos. Já é altura de andar. Chamo-me Catarina. Quer vir beber um café? Deve estar um bocado abalado, não? Dói-lhe alguma coisa? Não tem nada partido?
- Obrigado. Sim. A mota pode ficar onde está. - Ricardo estava surpreendido com a solicitude e a simpatia da senhora.

- O meu nome é Catarina, sou controladora aérea e viúva. O meu marido morreu num acidente de mota quando eu estava grávida de três meses do João.
- Controladora aérea? Pensei que fosse advogada... - Ricardo sentiu-se tolo, desajeitado, inadequado; como sempre, de resto. De todas as informações que ela lhe dera escolhera a menos importante: o seu erro.
- Dizem-me isso frequentemente. Não sei porquê.
- Enfim, pouco importa. Lamento pelo seu marido. Esta é a segunda vez que caio, mas a primeira foi há muito tempo, pouco depois de ter trocado o carro pela mota e ainda não conhecia os meus limites. Sou... - que profissão vamos dar a Ricardo? Intuitivamente diria jardineiro-paisagista, mas a verdade é que sei muito pouco desse trabalho. Também pode ser arquitecto, escritor, barman. Engenheiro não. Não quero um engenheiro nesta história. Bancário, professor universitário - se sim, de quê? -

- ... Sou arquitecto naval, divorciado, sem filhos. - O habitual sentimento de desajuste reaparece, mas Ricardo afasta-o. "Desta vez tenho uma desculpa. Foi ela que começou". Catarina não deu pela pausa, claro. Nós não sabíamos a profissão de Ricardo, mas ele sim.
- Arquitecto naval? Que giro! Adoro barcos.
- E eu aviões. Hesitei muito, mas no fim o mar acabou por vencer.

A conversa continua. Do senhor que caiu e a provocou nunca saberemos nada. Ricardo e Catarina trocam números de telefone, endereços de e-mail, páginas de Facebook. Skype? Não é preciso. Vivem na mesma cidade. Quando muito Whatsapp, mas não é importante.

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A primeira parte do conto está feita: já sabemos quem são as personagens, o que fazem; já encontrámos maneira de as fazer encontrarem-se. Mas isto é só o princípio. Não sabemos o que vai acontecer a seguir. Nunca se sabe, não é? Sabemos que cada um gosta do que o outro faz e simpatizaram o suficiente para trocar contactos. É tudo mas é pouco. Temos que ser nós a construir o que se seguirá. Tal como eles, de resto. O acaso ajuda a começar ou a acabar uma história, mas não a mantê-la. Não sabemos se gostam ambos das mesmas coisas - podemos imaginar que Ricardo gosta de pintura, por exemplo; de artes gráficas, de escultura - e de como gerem as diferenças, cimento maior de uma relação, muito mais do que as semelhanças. Não é aquilo que temos em comum que nos faz amar quem amamos, é a maneira como lidamos com o que não temos em comum.

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- Não sei. Não sou nada curiosa. Só me interessa o que tenho no radar - diz Catarina. - O que sei de onde vem, para onde vai e porquê. "Se" já matou muita gente.
- Deus matou muito mais - retorque Ricardo. - Eu sou ao contrário: não me interessa o que é; interessa-me o que poderia ser. Como seria esta quilha se...? Como seria esta receita se...? - É assim que ficamos a saber que Ricardo gosta de cozinhar. É um homem alto, bonitão, leve: tem êxito no seu trabalho mas não se deixa esmagar por ele.

Catarina e Ricardo encontram-se pela segunda vez. Não sabemos quem tomou a iniciativa. Provavelmente ele, com o pretexto - ou a finalidade - de lhe agradecer a ajuda do outro dia. Ricardo separou-se há algum tempo.

Estão num café à beira-rio. Nenhum deles sabe o que quer ou espera do outro. Catarina tem muito tempo livre: trabalha um dia em três. Ricardo trabalha muito e todos os dias.

- Um desenho não está acabado quando o barco está na água. Depois há que acompanhá-lo. Especializei-me em barcos de regata. Veleiros de competição. Trabalho com um atelier em França. É preciso ver os pontos fortes do desenho e os fracos, ver se foi a boa escolha para aquele navegador. Eles participam bastante no desenho e na construção, mas apesar disso é preciso fazer o seguimento das regatas. Posso ser chamado a qualquer instante, se alguma coisa se parte.

Ricardo começa a definir-se: não quer seduzir mas não se importa de ser seduzido. Gosta do que faz. Como eu, mais ou menos: gosto do que faço. Não poderia fazer outra coisa, sei-o de experiência. Já a parte da sedução é diferente: prefiro seduzir a ser seduzido, apesar de ter muito mais sucesso nesta do que naquela. As personagens são como filhos, crescem e desaparecem.

Catarina está feliz. Disse há pouco que nenhum dos dois sabe o que quer ou espera do outro. Era verdade quando o escrevi. Agora não: quer apaixonar-se por Ricardo.

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- Amo-te significa Quero amar-te - diz-lhe. Já estão na cama, acabam de fazer amor. Ricardo foi à cozinha fazer um chá, de que é grande apreciador. Estão em casa dele. Catarina deixou João com a mãe.

- Preciso de férias, mãe. Ficas-me com ele este fim-de-semana, por favor?
- Não é bem de férias que precisas, querida, se bem a inicial seja a mesma. Fico, claro.

Catarina há muito que está habituada à liberdade da mãe com a linguagem, as ideias, o "Que dirão?" e não liga à piada. Agradece e sai para se encontrar com Ricardo.

Falemos da mãe de Catarina antes de voltarmos à história de amor. Pelos meus cálculos terá sessenta, sessenta e cinco anos: nascida na primeira metade dos anos cinquenta. Foi "primeiro hippie, depois contestatária, a seguir burguesa de esquerda para acabar simplesmente livre". Cito-a, daí as aspas. Deixou o marido - pai de Catarina - ainda esta não era adolescente. Desde aí não tinha namorados. Tinha "homens":

- Hoje vem cá um homem dormir a casa, querida. Mas não te preocupes porque não fica muito tempo. A este dou uma semana. (Ou: dois dias; ou: um mês). Catarina entrou na adolescência a pensar que os homens eram uma espécie de pastilha elástica que se mastiga e deita fora. Depois, por reacção à mãe - chamemos-lhe Francisca, pode ser? - tornou-se monogâmica de longo prazo. Casou-se com o homem que conheceu aos dezoito anos e dele teve um filho, João (o que recebeu Ricardo no seu carrinho e se assustou, naturalmente). Francisca continuou a sua variada vida sexual e afectiva: o amor é um pássaro azul no alto da madrugada, etc. É uma mulher bonita, inteligente e livre. As duas primeiras qualidades atraem-lhe os homens que quer; a última filtra-os. Catarina tem com a mãe uma relação de amor combativo: ama-a e detesta o que ela faz. Parece-lhe excessivo, inadequado, provocador "porque sim". Toda a liberdade é excessiva, mas Catarina ainda é demasiado nova para o saber. Se não for excessiva não é liberdade. É outra coisa qualquer. Abertura de espírito, por exemplo. Uma trampa. A liberdade ou transborda ou não é.

Por isso escolheu uma profissão onde não há atalhos nem excepções à regra. As normas são o que são e não são o que não são. Nada no meio. "O que não está no meu radar não me interessa".

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Não nos esqueçamos todavia: temos uma história de amor para construir. Estas diversões são bem vindas (Francisca é uma dádiva) mas afastam-nos do cerne da história. Que caminho dar-lhe? "Viveram felizes para sempre" fica de fora à partida: isto não é um conto de fadas. O amor não cai do céu, pronto e à espera de ser digerido. É preciso fazê-lo: modelá-lo, construí-lo, aparar-lhe as unhas, cortar-lhe o cabelo. Não nasce feito; nasce imperfeito, incompleto, manco.

E neste caso ainda mais complicado: há um bebé na história. Um amor a três. Será que Ricardo quer um filho que não é dele? E como vai interagir com João? Como pai ou como amigo da mãe? Que espera Catarina? Quer partilhar a educação do filho ou pensa que Ricardo não têm nada aver com o assunto? Eu não viveria com uma criança se não tivesse autoridade sobre ela, mas a verdade é que nada é mais pessoal do que a educação de um filho. As pessoas aceitam críticas sobre quase tudo na sua vida; mas quando toca à educação das crianças alto e pára o baile. Nada. Se Catarina não aceitar que Ricardo interfira na educação de João não creio que seja possível fazê-los continuar juntos.

De momento ainda é cedo, note-se. Ricardo continua na sua casa na Graça, com uma vista bonita para o Tejo e Benedicta em Alvalade, num daqueles apartamentos da classe média-alta que sufocam Ricardo, lhe tiram o ar de tão previsíveis, tão banais na sua busca de originalidade.

II
Façamos o ponto da situação: por causa de um acidente de viação um homem e uma mulher encontram-se. Têm idades semelhantes - trinta a quarenta anos - vêm do mesmo estrato social e estão ambos livres afectivamente. A mulher - que começou por chamar-se Catarina mas depois ficou Benedicta, por razões que agora não vêm ao caso (e nunca virão, por inexistência) - é viúva e tem um filho pequeno, João. É controladora de tráfego aéreo. Ricardo, o homem é arquitecto naval, cozinheiro amador e divorciado. A mãe de Benedicta é uma senhora que - tivemos oportunidade de o ver - não liga a convenções sociais. De Ricardo sabemos menos: não encontrámos ainda nem a ex-mulher nem outro familiar; sabemos que é um homem bonito, que ama o seu trabalho e é reconhecido internacionalmente.

Os dois atraem-se o suficiente para já terem dormido juntos. Não sabemos se muitas se poucas vezes. Ricardo hesita em tornar esta relação mais séria e duradoura. Há no carácter quadrado e afirmativo de Benedicta algo que o atrai: a independência. É solícita, altruísta, simpática, bem-educada mas é fundamental e basicamente uma mulher livre, despojada - apesar de ganhar muito bem, ou por isso - desatada. E é ferozmente sensual, o que Ricardo aprecia. Para Benedicta o sexo não é ir ao encontro de Ricardo. É ir ao encontro de si própria. Mergulhar nela como se procurasse um poço cada vez mais fundo para cair.

É pequenina, tem os seios bem feitos, nem grandes nem pequenos, o ventre liso, olhos azuis, cabelo loiro pelos ombros.

- Não há actividade mais egoísta do que o sexo - disse um dia a Ricardo. - Quem diz o contrário ou mente ou não percebe nada de cama.

Ricardo não tem opinião formada sobre o assunto. Nem, de resto, sobre a maioria das coisas. Gosta de considerar todos os aspectos de um problema, de os pesar. No mar não há absolutos: o que se ganha de um lado perde-se do outro. Mais conforto é menos velocidade, mais capacidade de bolinar e perde-se à popa; e por aí fora: nada há numa embarcação, seja ela grande ou pequena, que não resulte de um compromisso entre forças antagónicas. Para Ricardo optar por um ou outro lado de um problema é quase uma violência. Examina-o por todos os ângulos, pesa e contrapesa argumentos, dá a volta a cada parâmetro. Sabe que não há absolutos: se as embarcações de regata hoje têm a popa tão larga é porque há cada vez menos bolinas nas regatas. Um dia essa tendência inverter-se-á; as popas estreitar-se-ão e as bocas diminuirão.

Quando Ricardo chega a uma decisão - seja em que área for, do sexo à política passando por um livro, um filme ou um jantar - Benedicta sabe que é muito difícil - mas está longe de ser impossível - fazê-lo mudar. São precisos argumentos mais fortes do que todos os que ele avaliou antes. É todavia com prazer que muda, contradição que ela nunca percebeu. Para Ricardo mudar de opinião é aproximar-se da “verdade” (palavra e conceito que ele raramente usa sem aspas), não afastar-se dela.

- A Terra é redonda, mas o próximo porto será sempre melhor do que o que acabámos de deixar.

Dar prazer é uma forma de comunicação. Ricardo acaricia lentamente os seios de Benedicta, beija-lhe os lóbulos das orelhas, chupa-lhe os dedos dos pés, passa-lhe os dedos pelos cabelos, pelo sexo, pelas comissuras dos lábios. Olha para ela, que tem os olhos fechados, quase indiferente à origem do prazer. Quase: como aprendeu ao sair da adolescência um homem não é intercambiável. Não é apenas dos dedos de Ricardo que lhe vem o prazer. É do que Ricardo sente por ela, porque os dedos...

- Que se foda - diz em voz alta. - Amo-te.

Pela primeira vez a palavra amo-te é utilizada desta forma entre eles. A sua história começa aqui e a nossa acaba. O resto está nas mãos injustas mas hábeis do acaso e nas inábeis, desajeitadas mas determinadas de Benedicta, Ricardo e, quando chegar a altura, João.

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