Para começar é tarde; para continuar, tem de dizer-se que o gajo do fato amarelo e do estojo de violino - sabe-se lá com o quê dentro - não era marreco. Podia ser, repare-se. Podia ter uma corcunda interior, invisível a quase todos os olhos. Ou talvez fosse ao contrário e essa deformação lhe permitisse ver melhor as outras. Nunca saberemos ao certo. É porém uma certeza: as nossas deformações ajudam-nos a ver melhor as dos outros; um pouco como a nossa experiência profissional nos habilita a entender os não-ditos dos nossos interlocutores do mesmo ramo de negócio. Se alguém me disser "para começar é tarde", por exemplo, eu sei perfeitamente o que essa pessoa quer dizer com isso, porque sou um gajo que se deita tarde e acorda igualmente tarde.
Aliás faço tudo tarde, desde a manteiga (com o leite da manhã, mas não fui eu quem ordenhou as vacas) até à por exemplo feijoada (com feijões do ano passado, plantados por mim em plena noite). Quem lesse isto pensaria que vivo no campo, mas tal não é o caso. Puro acaso. Se quisesse contaria uma história como se vivesse a cem quilómetros da cidade mais próxima. Não quero.
Vivo na cidade, a cem quilómetros do campo mais próximo. Isto é mentira. Questão de simetria. Simetria não, que a simetria não mente: um corcunda simétrico é menos inquietante do que um assimétrico. A simetria é um artifício da natureza para nos fazer ver por fora as perfeições interiores. Ou seja: disse que vivia a cem quilómetros do campo mais próximo porque.
Não vivo. Estou a perder-me. Não comprei cadeira nenhuma mas decifrei a loucura. Percebi a essência do amor: consiste basicamente em.
Isto muito resumidamente, claro. Tão pouco faço manteiga e de feijões só conheço as latas. Não vivo na cidade. De qualquer forma sempre gostei de riachos. A minha família tem uma ligação antiga mas vivaz aos riachos. Saltam, fazem barulho e por vezes galgam as margens. É preciso ver nisto uma imagem e uma descrição, como em tudo: acredito na biunivocidade. Na relação profunda e única da forma e do conteúdo. Nas corcundas interiores, por exemplo. Bom. Acredito em tudo e na relação ponto a ponto de tudo com tudo. Acredito na solidão, por exemplo, mas só depois de a relacionar com a existência de outros seres, eventualmente de outros planetas, outras solidões. Não existe solidão se não existir outro. Bom.
Vivo ao lado de um riacho, ao qual cheguei vestido de amarelo, com um estojo de violino vazio. Comprei uma cadeira à minha vizinha. Um dia morri, mas antes disso percebi o terrível mistério da aldeia. Tal é incontrolável o poder do amor.
Por isso me refugiei no estratagema: mais vale amar do que ser amado; qualquer aprendiz de adolescente o sabe. Ser amado é como ser escorraçado da gruta na qual hiberna o leão que está na selva. Quero dizer, vírgula, dois pontos: metaforicamente. Os leões não hibernam. Esperam, demasiadamente.
Bebem a água dos riachos e fazem manteiga com o leite da manhã, toda a gente sabe.
Menos eu, claro.
(Para a Alice L.)
Aliás faço tudo tarde, desde a manteiga (com o leite da manhã, mas não fui eu quem ordenhou as vacas) até à por exemplo feijoada (com feijões do ano passado, plantados por mim em plena noite). Quem lesse isto pensaria que vivo no campo, mas tal não é o caso. Puro acaso. Se quisesse contaria uma história como se vivesse a cem quilómetros da cidade mais próxima. Não quero.
Vivo na cidade, a cem quilómetros do campo mais próximo. Isto é mentira. Questão de simetria. Simetria não, que a simetria não mente: um corcunda simétrico é menos inquietante do que um assimétrico. A simetria é um artifício da natureza para nos fazer ver por fora as perfeições interiores. Ou seja: disse que vivia a cem quilómetros do campo mais próximo porque.
Não vivo. Estou a perder-me. Não comprei cadeira nenhuma mas decifrei a loucura. Percebi a essência do amor: consiste basicamente em.
Isto muito resumidamente, claro. Tão pouco faço manteiga e de feijões só conheço as latas. Não vivo na cidade. De qualquer forma sempre gostei de riachos. A minha família tem uma ligação antiga mas vivaz aos riachos. Saltam, fazem barulho e por vezes galgam as margens. É preciso ver nisto uma imagem e uma descrição, como em tudo: acredito na biunivocidade. Na relação profunda e única da forma e do conteúdo. Nas corcundas interiores, por exemplo. Bom. Acredito em tudo e na relação ponto a ponto de tudo com tudo. Acredito na solidão, por exemplo, mas só depois de a relacionar com a existência de outros seres, eventualmente de outros planetas, outras solidões. Não existe solidão se não existir outro. Bom.
Vivo ao lado de um riacho, ao qual cheguei vestido de amarelo, com um estojo de violino vazio. Comprei uma cadeira à minha vizinha. Um dia morri, mas antes disso percebi o terrível mistério da aldeia. Tal é incontrolável o poder do amor.
Por isso me refugiei no estratagema: mais vale amar do que ser amado; qualquer aprendiz de adolescente o sabe. Ser amado é como ser escorraçado da gruta na qual hiberna o leão que está na selva. Quero dizer, vírgula, dois pontos: metaforicamente. Os leões não hibernam. Esperam, demasiadamente.
Bebem a água dos riachos e fazem manteiga com o leite da manhã, toda a gente sabe.
Menos eu, claro.
(Para a Alice L.)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.