3.4.17

Instruções: dormir

É preciso apontar para a Lua e satisfazer-te com o primeiro calhau no qual tropeças porque não estás a olhar para onde pões os pés mas sim para onde tens a cabeça. Como é que eles dizem? "A cabeça nas estrelas e os pés no chão". Lá que tens os pés no chão tens, sem dúvida. E  muitas vezes as mãos também. E o ventre. E tudo. A cabeça é que nunca sai das estrelas. Isso não. Antes saísse, pensas ao tropeçar na porta da pensão onde arranjaste uma cama para a noite. Em quantos quartos assim já dormiste? A questão não é essa. Em quantos já dormiste que fazem esse passar por um Palace De Luxe Oito Estrelas?

Já tiveste a tua quota-parte de estrelas e calhaus. O que te falta é sono. Dormir aninhado na Lua, tirar os pés do chão  (e as mãos e o resto) e dormir como se estivesses numa praia sem areia, no campo sem formigas, no ar. Algures um louco rega a atmosfera com uma mangueira de bombeiro mas não te molhas. Já nada pode molhar-te, não é?, nem o cheiro a restos de comida da cozinha, o rapaz é nepalês e gosta do teu nome, explica o que é um sherpa  (ele pronuncia serpa, sem h) e fica surpreendido por tu saberes o que é.

O gajo da mangueira disfarçou-se de padre e diz "esta é a tua vida, toma-a e vive-a" e tu vive-la, claro, pés no chão e cabeça nas estrelas. Sonhas com um sono sem sonhos como outros sonham com o totomilhões uma sogra mais nova do que eles um carro resplandecente de encarnado e um cavalinho preto à frente a conquista do pólo Norte em cuecas e sem cães o Pai Natal carregado de igualdade e de beijinhos aos leprosos ou o fim da deslealdade e o regresso dos respectivos fantasmas, olhar esgazeado porque viram a margem do mundo.

Um bom sono, ano e meio de sono na tal praia sem areia, uma pequena loira e bonita a nadar ao longe e a trazer-te as conquilhas à Bolhão Pato que comias quando eras criança numa praia com areia. Bonito sono esse sem sonhos, bonito de morrer, por ele morrerias quase. Quase: morrer não é dormir.

Um drakkar encalha na praia. Deve ser daí que sai a mulher loira. Um drakkar encalhado na ausência de areia, na ausência de sono, nas estrelas. Está frio. Deve ser daí que sai o viking a reboque da Lua. Esta despacha telegramas para o universo todo: "Tenho homem com cabeça dentro de mim. Stop. Dentro cabeça tem drakkar. Stop. Dentro drakkar tem mulher loira. Stop. Aguardo instruções. Stop."

Dormisses tu, dormisses. Dói-te a cabeça. Deve ser dos vikings, das estrelas, da ausência de sono, dos amanhãs que cantam, dos abismos acolhedores para os quais olhas quando estás farto de olhar para a Lua e não tens um dedo para a substituir. Aguarda instruções.

Dorme. Esquece os cegos nas esquinas os coxos na pista de atletismo os estropiados nos balcões  de bancos internacionais as sereias sem pernas as putas cheias de carinho esquece paradigmas e sintagmas e hipérboles eufemismos metáforas metonímias litotes fonemas e a problemática complicada da caça às baleias-anãs no lago do Alqueva (é um lago artificial, tiveram de se adaptar à água doce, coitadas e agora estão quase a ser dizimadas por bandos de sogras jovens à procura de genros velhos e tu a fugir, a fugir).

No jardim à frente do hotel uma rapariga dá aulas de sono. Sabe do que fala: dorme vai para cinco anos. Sem comprimidos e sem sonhos.

Dorme. Não ligues às estrelas, não percebem nada da vida na escuridão e no frio. Tu sim. Podes dormir.

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